Discurso da Presidenta do Consea, Maria Emília Pacheco, na Abertura Oficial na 5ª Conferencia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
A 5ª Conferência Nacional de SAN, que abordou
neste ano o tema “Comida de Verdade, no campo e na cidade por Direitos e
Soberania Alimentar”, reuniu aproximadamente 2 mil pessoas, sendo 1.600
delegados e delegadas com a representação de 54% de mulheres, e cerca de 300
convidados nacionais e internacionais de 29 países.
Foram quatro (de 3 a 6 de novembro) dias de
debates e apresentação de propostas com o objetivo de ampliar e fortalecer os
compromissos políticos para a promoção da soberania alimentar e garantir o
direito à alimentação adequada. O encontro, em Brasília, contou com a presença
da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula.
Excelentíssima Senhora Presidenta
da República - Dilma Rousseff – é uma honra recebê-la na 5ª Conferencia
Nacional de SAN.
Meus cumprimentos aos Srs.
Ministros, Governador do Distrito Federal, demais representantes do Executivo,
e Parlamentares.
Meus cumprimentos aos delegados e
delegadas da sociedade civil.
Saúdo com satisfação nossos
convidados e convidadas nacionais e internacionais.
Neste momento, lembro mais uma vez
a figura de nosso patrono - Josué de Castro – brasileiro, cidadão do mundo, que
nos deixou enorme legado de suas reflexões e seu exemplo de engajamento na luta
contra a fome.
Presto a minha homenagem póstuma ao
Betinho- da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e pela Vida neste dia
de significado simbólico do seu nascimento (3 de novembro de 1935).
Completaria, hoje, 80 anos. Continua nos emocionando e mobilizando com as
lembranças de sua “Esperança Equilibrista”, como mostra o documentário
que assistimos.
Sras., Srs.,
A realização da Conferência
Nacional de SAN representa um momento histórico, que reafirma, em primeiro
lugar, a importância da participação social na construção da cidadania e
da democracia, contra as manifestações de racismo e de todas as formas de
preconceitos.
O processo que nos traz aqui contou
com o engajamento de aproximadamente 2.000 municípios, e 30.000 pessoas - de
todas as regiões do país, em todos os estados.
Envolveu cerca de 10.000 pessoas da
sociedade e de governos como participantes nas conferências estaduais, no
Distrito Federal e nos encontros temáticos sobre Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional na Amazônia; a atuação das Mulheres na construção da
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; a Água, Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional e a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional para
a população negra e povos e comunidades tradicionais.
Somos, hoje, 1.600 delegados e
delegadas com a representação de 54% de mulheres, e cerca de 300 convidados
nacionais e internacionais de 29 países.
Esses números representam uma
inequívoca mostra da força e do alcance de nossa articulação e mobilização
social. Sua composição expressa a formação social brasileira, uma sociedade
pluriétnica, a nossa sociobiodiversidade.
Povos indígenas de várias etnias,
população negra, povos tradicionais de matriz africana e povos de terreiro,
povos ciganos, comunidades quilombolas e cerca de 30 identidades coletivas das
comunidades tradicionais estão aqui representados.
Esses números indicam também os
vigorosos passos que temos dado na construção histórica do Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional.
É hora de reafirmar compromissos,
rever a trajetória recente pautada por conquistas, aflorar diferentes
percepções e debates de forma democrática sobre os alertas dos riscos de
retrocessos. É hora também de aperfeiçoar programas e ousar apresentar novas
proposições para a Política e um novo Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
A saída do Brasil do Mapa Mundial
da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO-ONU) é uma grande conquista.
Nos últimos anos, tivemos a
melhoria dos indicadores sociais, com a redução da extrema pobreza; a
diminuição significativa da insegurança alimentar moderada e grave, da
mortalidade infantil e da desnutrição.
Este quadro é resultado das
estratégias intersetoriais concretizadas em iniciativas políticas de
valorização do salário mínimo, da garantia de emprego, de programas de
transferência de renda.
Leia o discurso na íntegra no blog CONSEA-MG
Por isso, Senhora Presidenta,
valorizamos o compromisso de seu governo em garantir a continuidade de
Programas Sociais, sem cortes, como o Bolsa Família, Programas de convivência
com o semiárido, como P1MC (um milhão de cisternas) e P1+2 ( uma terra e duas
águas para produção).
Temos um cenário de maior
reconhecimento sobre a atuação das mulheres na promoção da segurança alimentar
e nutricional; maior visibilidade sobre as condições alimentares da população
negra, dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de
matriz africana/povos de terreiro, e demais povos e comunidades tradicionais.
Mas ainda permanecem os piores
índices de insegurança alimentar e nutricional para esses segmentos sociais,
que estão a requerer a continuidade e ampliação das políticas de superação das
desigualdades de gênero, raça e etnia para a garantia do Direito Humano à
Alimentação Adequada, em conformidade com a nossa Constituição.
Reconhecemos a importância dos
programas voltados para o fortalecimento da agricultura familiar e camponesa.
Por exemplo, a expansão das compras públicas de alimentos por meio do Programa
de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE), com seus mecanismos de controle social, Compra Institucional e o
Programa de Garantia de Preço Mínimo para os Produtos da Sociobiodiversidade
(PGMBio).
Mas é fundamental que não se
afastem de suas formulações originais, suas características próprias, seu caráter
inovador, e que haja progressiva adequação de normas de operação que respondam
às especificidades dos segmentos sociais nos vários biomas, sem cortes de
recursos e sem retrocessos.
Esses programas representam passo
importante, juntamente com equipamentos públicos de Segurança Alimentar e
Nutricional como, por exemplo, os restaurantes populares, as cozinhas
comunitárias e as feiras agroecológicas, para a construção de uma Política
Nacional de Abastecimento Alimentar.
Destacamos também a conquista da Política
Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, necessária para a garantia da
alimentação diversificada, adequada e saudável, que deverá ser aperfeiçoada e
ampliada em diálogo com a nossa proposta de uma Política Nacional de
Agricultura Urbana e Periurbana.
Saudamos também o fortalecimento da
cooperação Sul-Sul, que se destaca entre as estratégias do governo brasileiro
na área de Segurança Alimentar e Nutricional, que deve ter continuidade e
avançar para uma Política Nacional de Cooperação que incorpore os princípios da
soberania alimentar e da participação social.
Temos debatido também as
dificuldades dos problemas políticos econômicos que impactam a soberania e
segurança alimentar e nutricional. Não há caminho único para enfrentá-los. É preciso
assegurar direitos e avançar com políticas redistributivas. Os trabalhadores e
os pobres não podem arcar com o ônus da crise econômica.
Resolvemos apresentar a nossa
visão de futuro através do lema: comida de verdade no campo e na cidade:
por direitos e soberania alimentar.
Queremos fazer um chamamento, uma
convocação à sociedade e aos governantes sobre as potencialidades e as ameaças
de nosso sistema alimentar.
Defendemos a comida como patrimônio
e não como mercadoria. É urgente valorizar as diferentes tradições culinárias e
ter em conta o valor cultural da comida, pois corremos o risco de perder a
memória alimentar do país. Assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada
significa garantir o direito ao gosto, contra a padronização da alimentação; reconhecer
os diferentes significados do alimento como expressão dos modos de vida, do
sagrado, dos laços de solidariedade e reciprocidade, de sistemas alimentares
com rica biodiversidade.
Por isso falamos da função social
da terra e dos sujeitos de direitos. Um Plano como o Matopiba, sobretudo no
cenário de crise ambiental, hídrica e das mudanças climáticas, está na
contramão de nosso lema.
Precisamos avançar na garantia dos
direitos territoriais dos povos indígenas e comunidades tradicionais, na defesa
do limite do tamanho da propriedade, na democratização da terra, na criação de
Unidades de Conservação de uso sustentável e a realização da Reforma Agrária.
Os povos indígenas nos trazem um
grande legado. Com certeza muitos alimentos que constam da lista na importante
e recente publicação do Ministério da Saúde sobre os Alimentos Regionais são
fruto do processo de domesticação de plantas, de sistemas agrícolas
tradicionais e do manejo sustentável desses povos, bem como são parte das
tradições alimentares vindas da África.
Não podemos aceitar que continue
ocorrendo um verdadeiro etnocídio na sociedade brasileira. Fazemos um clamor ao
Congresso Nacional para que arquive a PEC 215. Que se mantenha o princípio
constitucional da atribuição ao executivo da demarcação e homologação dos
territórios indígenas.
Com a mesma firmeza recomendamos ao
Supremo Tribunal Federal que julgue improcedente a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.239, dirigida contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta
o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Nosso lema chama atenção para a
qualidade da alimentação. Queremos uma alimentação adequada e saudável sem os
riscos da contaminação por agrotóxicos nos alimentos e na água, livre de
transgênicos e sem os impactos na saúde dos produtos alimentícios
ultraprocessados.
A crescente pressão dos conglomerados
econômicos de produção de agroquímicos para atender as demandas do mercado de
agrotóxicos, fertilizantes, micronutrientes, sementes e de commodities
agrícolas, coloca em risco nossa soberania alimentar.
Temos uma proposta de Programa
Nacional de Redução dos Agrotóxicos (Pronara), estabelecida como meta no Plano
Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica (Planapo), elaborado na
Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo). Ela é fruto do
debate com o Consea e vários setores da sociedade: o movimento agroecológico,
as organizações de pesquisa e saúde, como a Fiocruz, Instituto Nacional do
Câncer e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); os movimentos
sociais reunidos na Campanha Permanente contra os agrotóxicos e pela Vida, e
a Campanha do Ministério Público de combate aos impactos causados pelos
agrotóxicos. Mais do que expectativa, há urgência de lançamento deste
Programa.
Precisamos também manter a
mobilização pela manutenção da rotulagem dos produtos transgênicos, em risco
também no Congresso Nacional.
Apenas três corporações – Monsanto,
DuPont e Syngenta – controlam 55% das sementes comerciais do mundo. Seus
interesses ecoam, hoje no Congresso Brasileiro através de um projeto de lei que
visa anular no país a proibição da tecnologia Terminator – sementes
geneticamente modificados para processar sementes estéreis.
A tecnologia foi criada para
proteger os lucros das empresas e eliminar o direito histórico dos agricultores
para armazenar e replantar as sementes colhidas como as sementes da paixão,
semente da fartura, sementes dos avós, sementes nativas, como são conhecidas as
sementes crioulas pelo país. 6
Se
aprovado, pelo Congresso Brasileiro, o PL 1117/2015, irá violar uma moratória
internacional - sobre os testes de campo e comercialização de sementes Terminator
- unanimemente aprovada em 2000, e reafirmada em 2006 por 192 governos na
Convenção das Nações Unidas na reunião da Convenção da Biodiversidade, em
Curitiba, no Brasil.
Temos também uma população com
crescente índice de sobrepeso e obesidade. Aumentou o consumo de produtos
alimentícios ultraprocessados com excesso de sódio, gordura, conservantes e
produtos químicos.
Por isso saudamos a Estratégia
Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade e o lançamento do Guia
Alimentar da População Brasileira, que nos estimula ao consumo de alimentos
saudáveis, variados, à valorização das culturas locais e de sistemas
alimentares socialmente e ambientalmente sustentáveis.
Mas é necessário que o Estado
regule a rotulagem, a publicidade de alimentos, visando a proteção da infância,
e também, que assegure a readequação da legislação sanitária de alimentos de
origem animal e bebidas à produção artesanal e tradicional.
Estes são os passos necessários no
caminho que continuaremos a trilhar para um futuro com comida de verdade, no
campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar.
Obrigada.
Brasília, 3 de novembro de 2015.
NOTA: O
Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba, citado no discurso, foi
criado pelo Decreto nº 8.847, de 6 de maio de 2015. A sigla refere-se à área de
abrangência do Maranhão, Tocantins, Piauí, Bahia – totalizando 73 milhões de
hectares, ou seja, 51% da área dos 4 estados, distribuídos em 3 biomas –
Amazônia, Cerrado e Caatinga. Destinado ao agronegócio, prevê polos de
carcinocultura, celulose e grãos, com a substituição dos remanescentes da
vegetação natural, sobretudo do Cerrado, com impactos ambientais e, sobretudo
impactos sociais na região de ocupação antiga com povos indígenas, comunidades
quilombolas, camponeses, com fortes riscos e ameaças ao aumento do índice de
insegurança alimentar dessas populações.
Comentários