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ENTREVISTA ESPECIAL DE D. MAURO AO COEP




Dom Mauro Morelli é uma figura história na luta contra a fome e a pobreza no país. Na década de 1980, foi bipo de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e liderou várias ações contra o descaso com crianças e adolescentes. “Essa coisa de dizer que criança que morre vai virar anjinho, é um abusurdo”, ressalta.
Também participou de lutas pela reforma agrária e teve uma atuação de destaque no Movimento pela Ética na Política, que levou ao impeachment de Fernando Henrique Collor de Mello. “O Movimento  pela Ética aproveitou o momento para dizer que a maior corrupção do Brasil, na verdade, era o modelo de desenvolvimento que concentra renda. O absurdo era ser um grande produtor de alimentos e ter milhões de pessoas passando fome”, acredita.
Nesta entrevista, D. Mauro fala de outra experiência igualmente importante na sua trajetória como defensor dos direitos humanos. Ele foi o primeiro presidente do Consea, ainda em sua edição de 1993. “O Consea foi uma evolução fabulosa, e muitas coisas que estão presentes hoje, como a descentralização da merenda escolar, nasceram naquele momento que durou pouco mais de um ano”, avalia.

Conte-nos sobre o início de seu envolvimento com o Consea.
Dom Mauro Morelli –
Logo depois do impeachment, eu estava num período mais recluso. Estava na minha casa quando o Betinho me telefonou e disse: “D. Mauro, nós, do Movimento pela Ética na Política, estamos reunidos aqui em Brasília. O senhor tem que vir para cá porque estamos fechando um acordo com o Itamar [Franco, então presidente da República] e eu não tenho condição física de circular semanalmente tanto por Brasília como pelo Brasil”. Então, convocado pelo Betinho, lá fui eu para Brasília.
E o que o levou a aceitar a presidência do Consea?
Dom Mauro Morelli –
Betinho insistia que eu deveria assumir o Consea, mas, antes da minha resposta, o Itamar me disse: “Aqui, o regime é presidencialista. Se o senhor for secretário, a linguagem é de segundo escalão e não vai funcionar. O senhor tem que ser presidente do conselho”. Ele me honrou com essa confiança e me nomeou presidente do Consea, mas eu era tratado protocolarmente como ministro. Eu não estava subordinado a nenhum ministro e havia um acordo de que um pedido meu de audiência seria agendado em, no máximo, 24 horas. Foi um privilégio viver algo tão original. Na minha compreensão, ali nós atingimos um estágio avançado da democracia, em que não apenas se elege um governante, mas se discutem ações de governo, formulam-se políticas públicas e acompanha-se essa concretização. Não se trata apenas de delegar a um constituinte, mas de acompanhar e influir nas decisões tomadas.
Quais foram as principais dificuldades na presidência do Consea?
Dom Mauro Morelli –
Eu gastava muito do meu tempo com três coisas: desfazer intrigas, tentar convencer os que tinham o poder na mão de que esse caminho precisava ser percorrido e, por último, tentar viabilizar as propostas do Consea. Para não dar margem a essas intrigas, cheguei a fazer um acordo com o Itamar. Eu disse: “Presidente, eu não recebo recado de ninguém em seu nome, com exceção de um ministro que combinamos. Se o senhor não quiser, não puder falar comigo diretamente, peça ao ministro. Ninguém mais”. Além das intrigas, outras dificuldades eram a burocracia, a mediocridade e os ciúmes. Gasta-se muita energia nisso. Tínhamos uma equipe enxuta, embora eu reconheça que o presidente nos deu ampla possibilidade de locomoção pelo país. Outra maneira de conseguir realizar coisas era o acesso às empresas e aos bancos que podiam apoiar eventos ou ações emergenciais. Lembro, inclusive, que foi assim que conseguimos formar uma rede de solidariedade às vítimas da seca no Nordeste. O próprio governo realizou, com toda a crítica que se possa fazer, uma ação emergencial no Nordeste na época da seca.

Manter ministros participando das reuniões do Consea não era fácil, à exceção de dois ou três que eram muito fiéis. Mesmo com todo o apoio recebido diretamente da Presidência da República, era como se metade dos ministros gerasse miséria e fome, e a outra metade tentasse consertar. É algo esquizofrênico mesmo. O Estado brasileiro é – aprendi isso na Constituinte – constituído para garantir cidadania a uma elite. Apenas 25% ou 30% são contemplados. A lei, o orçamento e a estrutura são para garantir os direitos apenas a essa faixa da população. O resto é resto. Aqui, a elite sempre foi acoplada ao poder e criou um Estado do qual se serve até hoje.
O que mais destacaria nessa experiência do Consea?
Dom Mauro Morelli –
A generosidade do povo diante de tudo o que aconteceu. As iniciativas, a vontade de apontar caminhos. Foi um momento de reconciliação do povo brasileiro. Ninguém estava preocupado apenas com uma ideologia. Qualquer ser humano, por mais rico que seja, não resolve o seu problema de alimentação sozinho. Não há nenhum rico que possa comprar o planeta Terra. Se a cadeia alimentar for desfeita, todos morrem. O rico pode construir uma redoma de vidro, com água e alimentos excelentes, e passar a vida prisioneiro da sua riqueza. Mas isso não é viver. Todo ser humano, pobre ou rico, mulher ou homem, criança ou idoso, precisa da alimentação para viver. Estamos ligados à nossa mãe pelo seio, pelo cordão umbilical por onde passa oxigenação, por onde passa tudo. Precisamos de ternura, do leite da mãe, do arroz e do feijão. É um processo permanente. Costumo dizer que o Consea é diferente de outros conselhos porque nele todo mundo está de acordo no básico: se eu não comer e não beber, eu morro. É um direito e uma necessidade de todos.
E como o Consea terminou?
Dom Mauro Morelli –
Infelizmente, percebi, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, que as forças da República não levariam à frente aquilo que estávamos trabalhando. Havia uma tensão no governo, e encaminhamentos que o próprio presidente Itamar determinava acabavam não acontecendo. Ainda antes da posse do novo governo, tive uma audiência com o Fernando Henrique, com seu vice, Marco Maciel, e alguns parlamentares da composição do governo. Expliquei que o Consea era fruto de um acordo entre o presidente da República e o Movimento pela Ética na Política. Caberia ao novo presidente renovar ou não e aguardaríamos uma decisão. Não entregamos uma demissão coletiva porque o nosso mandato tinha duas bases de sustentação: a Presidência e o Movimento pela Ética. Fernando Henrique, então, pediu que continuássemos o trabalho e disse que, após a posse, nos chamaria. Mas nunca chamou. Por decreto, ele acabou com tudo o que estávamos trabalhando. Foi assim que se desfez o Consea.
Até onde vai o papel da assistência social no combate à fome?
Dom Mauro Morelli –
Não tenho nada contra assistência social. Pelo contrário, acho que é necessária e tem seu lugar. O Brasil tem uma lei de assistência social excelente, uma conquista. O problema não é a aplicação da assistência social. Por exemplo, uma pessoa desempregada também tem direito a comer. Então, são necessárias medidas assistenciais. O erro é tratar como assistência social o que é um direito. O Bolsa Família é uma medida de assistência social e está dentro do Ministério de Assistência Social. Essa é uma medida que tem seu valor, seu tempo de aplicação. Mas o que queremos são políticas públicas que assegurem acesso à habitação, à educação etc. Políticas que assegurem que as pessoas tenham casa e que essa casa tenha privacidade e salubridade.

Para garantir os direitos da alimentação e nutrição, é preciso orquestrar as ações da família, da sociedade com todas as suas instituições e dos governos em todos os níveis. Isso é fundamental. Quer dizer, uma organização que trabalha pelo direito à alimentação e nutrição e não aceita dialogar com o governo não conseguirá nada. Sem governo, não se faz nada. E o que nós queremos não é caridade. Para nós, é uma questão social de raiz econômica e decisão política. A fome não pode ser tratada como caridade. Não é questão de assistência social.
E qual foi seu envolvimento na criação do Consea/MG?
Dom Mauro Morelli –
Eu estava um pouco afastado, mas a coordenação do então recém-criado Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN) se reuniu no Rio de Janeiro e me fez ver que estava em curso uma articulação. Assim, decidimos dialogar com os governadores que haviam sido eleitos em 1998 e que tinham um discurso crítico à condução econômica do país, entre eles Mário Covas, do PSDB. Então, escrevi uma carta de três páginas a esses governadores. Acho que eram uns nove, entre eles: Itamar, Anthony Garotinho, Ronaldo Lessa, Olívio Dutra, Zeca do PT e Jorge Viana. Acompanhado do Chico Menezes, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e do FBSAN, visitei os governadores e propus retomar o caminho da parceria entre governo e povo, retomar o Consea, mas em âmbito estadual. Mário Covas queria isso, mas, por conta da sua saúde frágil naquele momento, não conseguimos levar adiante a idéia. O Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, iniciou um movimento para criar o Consea, mas não vingou. No Ceará, disseram que seria muito difícil acertar com a governadora, mas ela me recebeu já com a mensagem de criação do Consea a ser encaminhada à Assembléia Legislativa e já está aprovado.

Conversei com o Garotinho, governador do Rio de Janeiro na época, mas na verdade só foram criados os Conseas de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Alagoas. E foi só em Minas Gerais que o legado do Consea e da Ação da Cidadania rendeu. Além do Consea/MG, também foi criado o Fórum Mineiro de Segurança Alimentar e Nutricional.
E quais têm sido os resultados do Consea/MG?
Dom Mauro Morelli –
Mesmo não sendo bispo em Minas, fui convidado pelo então governador Itamar Franco a aceitar a presidência desse Consea estadual. Estou há nove anos em Minas e posso afirmar que existe a consciência de que se chegou a um estágio a que nenhum outro estado brasileiro chegou. Foi em Minas que surgiu a primeira Lei de Segurança Alimentar. Sigo como presidente do Consea/MG, mesmo com as mudanças políticas no governo estadual. O Consea/MG tem orçamento e eu tenho uma equipe com seis técnicos e outras pessoas. Temos também toda uma estrutura de funcionamento: estamos com 25 comissões no estado, temos uma coordenadoria no gabinete do governador, uma secretaria executiva. Temos fundamentos e exigibilidade.
Como o senhor avalia os demais Conseas estaduais?
Dom Mauro Morelli –
Muitas coisas foram criadas, muitos conselhos, mas sem condições. Dificilmente haverá no Brasil o que conquistamos em Minas. Não foi concessão alguma. Sempre digo que o povo conquista as coisas. O governador não é nem bom nem ruim. É governador. Ele administra. O prefeito é a mesma coisa. Tenho essa compreensão. Acho que hoje alguns dizem: "Vamos criar conselhos”. Acho que não. Criar um conselho agora não vai sanar bem o problema.
Como vê o Brasil diante da crise de alimentos no mundo?
Dom Mauro Morelli –
O Brasil é um país que tem muita capacidade de produzir bastante alimento, mas não é para balança comercial. Na minha visão, enquanto alimento for commodity ou mercadoria, vamos ter fome no planeta e degradação ambiental. Estive em Cuba há algum tempo, em uma reunião mundial sobre a questão da alimentação, e fiquei impressionado. É o único país das Américas, além do Canadá, que tem uma política de nutrição, nem os Estados Unidos chegam perto de Cuba nos índices de nutrição do povo. Vi crianças com a pele revelando saúde, brilho nos olhos, e ouvi perguntas inteligentes. É disso que o Brasil precisa. Precisamos de um símbolo, uma menina, um menino brasileiro, aos 7 anos com tal estatura, saúde, vigor e perguntas inteligentes. Se a criança não se desenvolve corretamente, seus neurônios ficam bloqueados. O que ela vai fazer na escola?
Como vê atualmente a questão da segurança alimentar no Brasil?
Dom Mauro Morelli –
O quadro nutricional do Brasil era tão ruim, tão escandaloso, mas melhorou muito. Ainda assim, continua péssimo. Temos que ter essa vontade de transformação do país. Josué de Castro foi um profeta insuperável. Ninguém como ele, que era médico e geógrafo e um ser humano muito político, fez tão bem uma denúncia para a humanidade.  Ele apontou qual o problema, sua gênese, e também apontou os caminhos de superação. Josué de Castro impressionou o mundo, Betinho tem seu lugar na história, ele tocou as pessoas. O Lula, independentemente de seu governo, tem o mérito de ter recolocado, na agenda política nacional e internacional, a fome como uma questão fundamental para a humanidade. Lula é um homem que tem fome e sede de justiça. Ele não é o melhor, mas é um homem que viveu a injustiça e sentiu a violência da migração.

Uma sociedade democrática é uma sociedade comprometida com as diferenças. Ela se organiza em função disso e ela amanhece todo dia, determinada a não aceitar as desigualdades. É uma sociedade que combate estrutural, política e diariamente a injustiça social. Essa era a grande questão do Movimento pela Ética na Política e que continua tão atual: organizar uma sociedade que tenha valores preciosos, uma sociedade que não exclui, que preserva as fontes de vida, que valoriza as diferenças. Aliás, muitas pessoas se confundem, mas a diferença é uma benção. A desigualdade é que é horrível. Creio que nós ainda não tivemos no Brasil a ousadia, a coragem, a força política de agir como uma sociedade democrática deveria agir. Tivemos condição de dar um passo corajoso, mas ainda temos um longo caminho pela frente.
   


FONTE: COEP – Coleção Cidadania em Redes – novembro de 2008
Das ruas às redes - 15 anos de mobilização social na luta contra a fome a pobreza

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