Sexta, 21 de fevereiro de 2014
Entrevista especial com Katya Isaguirre
“O artigo 9º da Lei 10.814
previa que o produtor de transgênicos que contaminasse terceiros pelo
uso desses produtos teria de responder a uma indenização. Esse artigo
deixou de existir”, lamenta a advogada.
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Foto: APSEMG |
Na manhã de quarta-feira, 19-02-2014, foi suspenso o julgamento da Ação Civil Pública que pedia a anulação da Resolução Normativa de nº 4 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, que determina as atuais regras para o cultivo de sementes transgênicas de milho no Brasil. O julgamento ocorreu no Tribunal Regional Federal da 4ª região - TRF4, em Porto Alegre, e foi acompanhado pela advogada da Terra de Direitos, Katya Isaguirre, que conversou com a IHU On-Line, por telefone, logo após a sentença.
Crítica à Resolução Normativa de nº 4 da CTNBio, Katya assinala que a resolução é “ineficiente e não atinge os padrões mínimos de coexistência” entre lavouras de milho transgênico
e não transgênico, além de não garantir padrões de segurança ambiental e
de direito dos agricultores e consumidores. Na entrevista a seguir, a
advogada explica as irregularidades da normativa e acentua que ela “não
atende às características socioculturais do Brasil, porque não é feita uma análise das diferenças existentes nos diversos biomas e ecossistemas”.
De acordo com ela, o avanço do milho
transgênico em todo o país faz com que agricultores tenham dificuldades
de utilizar sementes crioulas e investir na agroecologia. “No Rio Grande do Sul,
um estudo demonstra que houve uma diminuição significativa — cerca de
20% — de agricultores orgânicos e agroecológicos que desistiram de
produzir o milho crioulo, o milho sem transgênico, porque a
possibilidade de contaminação é enorme”, assinala.
Katya Isaguirre é graduada em Direito, mestre em Direito Empresarial e Cidadania e doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é professora de Direito Ambiental e Agrário da Universidade Federal do Paraná e advogada da ONG Terra de Direitos.
Confira a entrevista.
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Foto: Terra de Direitos |
IHU On-Line - Como foi o
julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª região - TRF4 da Ação
Civil Pública, que questiona as regras para o plantio de milho
transgênico determinadas pela Resolução Normativa de nº 4 da Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio?
Katya Isaguirre – Houve um pedido de vistas pela desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha, que integrou a composição da Corte. Ela quer examinar melhor os autos. Por isso, ainda não houve uma decisão definitiva.
A relatora do processo, a desembargadora Marga Inge Barth Tessler, e o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
votaram para manter a sentença. Com esse resultado perderíamos o
processo. Mas tivemos como positivo o pedido de vistas e o parecer do Ministério Público Federal. O representante do MPF
reconheceu que a contaminação de milho não transgênico por milho
transgênico está provada nos autos do processo e que existe uma colisão
de direitos entre os produtores de transgênicos, os agricultores
familiares e os povos e comunidades tradicionais. Ou seja, é mais do que
necessário rever a Resolução Normativa nº 4 da CTNBio.
IHU On-Line – Já foi determinada a data do novo julgamento?
Katya Isaguirre – Ainda
não, porque os juízes não têm um prazo específico para recolocar o
processo na pauta. Nos próximos 15 dias não teremos modificações.
IHU On-Line – Quais são as críticas feitas à Resolução Normativa de nº 4 da CTNBio?
Katya Isaguirre – São várias. Aliás, é muito importante estarmos conversando sobre isso, porque o representante da Monsanto
disse, na sustentação oral, que a questão que estamos levantando é uma
“realidade fantástica”, ou seja, algo que não corresponde à realidade
dos agricultores, porque não se vê, na mídia, nenhuma reportagem ou
notícia sobre o tema.
Insisti com ele que a Resolução Normativa de nº 4 da CTNBio
deveria dar conta de garantir um padrão de coexistência entre milho
transgênico e milho não transgênico. Agora, a coexistência não depende
somente da distância entre as culturas. O conceito de coexistência exige
que se garantam padrões mínimos de proteção à biodiversidade, direito
de informação aos consumidores para que eles possam escolher os
alimentos que irão consumir e direito de escolha aos agricultores para
que decidam qual modelo de semente irão utilizar: transgênica ou
crioula. A coexistência, nesse sentido, não é analisada somente do ponto
de vista econômico, mas tem de comportar dimensões ambientais, de
soberania e segurança alimentar, do patrimônio histórico-cultural e do
direito de escolha do agricultor e do consumidor.
A normativa da CTNBio
estabelece um distanciamento de no mínimo 100 metros para separar uma
cultura da outra. Só que esse é um padrão de medida que não atende às
características socioculturais do Brasil, porque não é feita uma análise
das diferenças existentes nos diversos biomas e ecossistemas. Além
disso, não se leva em consideração as variáveis climáticas,
ou seja, a força e a direção dos ventos, porque o milho é uma espécie
de polinização cruzada, então um vento forte desloca o pólen do milho
para outras distâncias. A normativa também não considera o tamanho das
áreas agrícolas e o mosaico que se forma do conjunto dos imóveis rurais
em determinadas regiões do Brasil. É possível ter uma propriedade muito
grande com cultivo transgênico e outras propriedades menores em volta,
que plantam milho não transgênico. Nesse caso, a contaminação pode ser
muito grande. Então, a diferença de tamanho influencia a contaminação.
Ao realizar esta normativa, a CTNBio
também não levou em conta o zoneamento ecológico econômico e o
georreferenciamento, que são instrumentos de regularização presentes no Código Florestal antigo.
Metragem entre os plantios
Além disso, os estudos científicos que
estão anexados ao processo mostram que pode existir uma diferença na
metragem, se ela será de 100, 200 ou 300 metros. Mas todos os
especialistas são unânimes em afirmar que, em distâncias de até 100
metros, ocorre contaminação, e o laudo da Secretaria de Agricultura do Paraná comprovou que existe contaminação no estado.
Se formos utilizar as referências da União Europeia,
como o juiz referiu, temos de considerar que a rotulagem do produto é
diferente da nossa. Eles levam em consideração 0,9% de transgênico por
produto. Mas as distâncias de isolamento deles variam de 15 a 800 metros
e consideram diversas variáveis para fazer o cálculo: o país, o tipo de
cultura, o tamanho das áreas agricultáveis, o tipo de cultivo, se é
orgânico ou convencional, etc.
Também temos de dimensionar a realidade agrária brasileira, pois a aplicabilidade dessa metragem varia se for para um pequeno ou um grande produtor.
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"Há uma incompatibilidade absoluta de normas" |
Com relação à liberdade e autonomia dos
agricultores, povos e comunidades tradicionais, a normativa não
considera que eles são guardiões do patrimônio genético. Eles são
agricultores, mas manipulam a semente para o próximo plantio, realizam o
melhoramento genético, trocam as sementes com os outros produtores. E
essa é a base do Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, que diz que uma das diretrizes do desenvolvimento rural sustentável é a conservação dentro das propriedades. O Brasil é signatário desse tratado, mas isso não foi considerado à época da elaboração da normativa.
Decreto 4.680
Outra questão a ser considerada é a que
diz respeito aos consumidores, porque é difícil tornar viável o direito à
alimentação adequada. O artigo 2º do Decreto 4.680 foi utilizado pelo juiz para dizer que a rotulagem dos produtos com transgênico
só acontece quando for encontrado um percentual acima de 1% de
transgênico no produto. O juiz usou isso para dizer que não existe
resolução na legislação que preveja contaminação zero. Isso está
absolutamente errado, porque a medida da rotulagem é sociopolítica.
Todos os produtos deveriam ser rotulados. Não encontramos mais farinha
de milho não transgênica no mercado, e a contaminação está cada vez mais
forte.
Essa normativa também não compreende a dimensão do patrimônio histórico-cultural, porque a manipulação das sementes
faz parte do modo de vida dos povos tradicionais e dos agricultores.
Simplesmente permitir a contaminação faz com que eles não tenham
condições de reproduzir esse modo de vida.
Também há uma diferença importante a ser feita entre o Decreto 4.680,
que estabelece a obrigatoriedade de rotulagem para produtos
transgênicos superior a 1%, e as coexistências, que é o objetivo da CTNBio.
A finalidade do Decreto é dar informação aos consumidores e esse é um
dos critérios da coexistência, mas não é o único. Existem outros dois:
meio ambiente e direito de escolha dos agricultores. Esse Decreto está
equivocado porque não oferece segurança aos produtores para impedir a
contaminação. Existe uma divergência de finalidade entre esse Decreto e a
resolução normativa que queremos invalidar.
O argumento do juiz, quando disse que
não existe, para a legislação nacional, nenhuma referência de que seja
necessário 0% de contaminação, é equivocado, por duas razões: existe uma
legislação de referência que prevê 0% de contaminação, que é a Lei 10.831, de 2003,
a qual define o que é o sistema orgânico de produção. Quando se define
esse sistema, é dito claramente que é necessário que ele não sofra
nenhuma espécie de contaminação por organismos geneticamente
modificados. A segunda razão é que o objetivo da ação não é garantir 0%
de contaminação. O objetivo é declarar a invalidade de uma norma que é
ineficiente e não atinge os padrões mínimos de coexistência, padrões de
segurança ambiental e de direito dos agricultores e consumidores.
Historiografia
Por fim, lembramos que a historiografia
existente por trás da questão dos transgênicos leva a uma realidade que
foi construída às pressas. Se lembrarmos de como ocorreu a introdução de
cultivos clandestinos no Rio Grande do Sul em 2003 até
a situação atual de 2014, veremos que as normas de antes eram mais
protetivas e próximas do conceito de coexistência do que as que existem
hoje. O artigo 9º da Lei 10.814 previa que o produtor
de transgênicos que contaminasse terceiros pelo uso desses produtos
teria de responder a uma indenização. Esse artigo deixou de existir.
Além disso, há um comunicado técnico da CTNBio, segundo o qual há necessidade de se observar uma distância de 400 metros quando se faz plantio de semente transgênica
de finalidade experimental. Aí você pensa e chega à seguinte pergunta:
como se tem uma norma que prevê um distanciamento de 400 metros quando o
assunto em questão é a proteção da propriedade intelectual das sementes
transgênicas, sendo que de outro lado se tem uma normativa inferior
quando a referência é a proteção do agricultor? Há uma incompatibilidade
absoluta de normas.
Por fim, a normativa, na sua
integralidade, é inválida porque é ineficiente e está distante de
apresentar respostas para a questão da subsistência, a qual tem de ser
vista como uma proposta social e política e requer a participação de
toda a sociedade. É preciso que o Brasil tenha um plano de coexistência próprio de acordo com as diferenças do país.
IHU On-Line – Quais os contra-argumentos do representante da Monsanto diante dos teus argumentos?
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"O representante da Monsanto insistiu em dizer que a CTNBio é a única competente para tratar de assuntos dessa natureza." |
IHU On-Line – Segundo o
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, 81,4% do milho do país são
de origem transgênica. Como os agricultores têm reagido à possibilidade
de plantar milho transgênico? Há estimativas da adesão ao milho
transgênico desde a sua liberação no país?
Katya Isaguirre - Existem vários dados. No Rio Grande do Sul,
um estudo demonstra que houve uma diminuição significativa — cerca de
20% — de agricultores orgânicos e agroecológicos que desistiram de
produzir o milho crioulo,
o milho sem transgênico, porque a possibilidade de contaminação é
enorme. Tanto os agricultores quanto as lideranças são fortes em afirmar
que a contaminação está acontecendo, e faz com que os agricultores não
tenham mais condições de manter a produção orgânica agroecológica,
porque ela se torna inviável.
Além disso, é muito complicado conseguir o certificado orgânico.
Se for detectada a contaminação do plantio de um determinado
agricultor, ele perde o certificado, e algumas vezes o grupo de
agricultores vinculados a ele, também. Nesse caso, eles têm de se
submeter a um novo processo de certificação, o qual implica um período
de repouso da terra para ela se “reacomodar” ao padrão agroecológico.
Então, o avanço do cultivo transgênico inviabiliza a produção orgânica e
agroecológica.
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