Maria Emília Lisboa Pacheco
Como atuam as mulheres na defesa e promoção da Soberania e Segurança Alimentar
e Nutricional? Que obstáculos superar para garantir a igualdade nas relações
sociais de gênero? Que propostas e mecanismos inovar ou aperfeiçoar para a
efetivação dos direitos das mulheres na Política Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional? São exemplos de perguntas a debater no dia 8 de março,
Dia Internacional da Mulher.
Há que reconhecer conquistas das mulheres através da história, fruto de suas
lutas e organização. Mas ainda vivemos tempos de muitas desigualdades.Miriam
Nobre e Nalu Faria, na publicação“Gênero e Desigualdade” (Sempreviva
Organização Feminista, São Paulo, 1997), escrevem que as relações sociais de
gênero estruturam o conjunto das relações sociais e de práticas sociais. Os
espaços da família, do mundo do trabalho, da política, da economia, da cultura,
organizam-se a partir de papéis masculinos e femininos definidos socialmente e
são relações hierárquicas e de poder.
O conceito explica as identidades e papéis masculino e feminino como construção
histórica e social, sujeita portanto à mudança. Esta construção tem uma base
material, e não apenas ideológica, que se expressa na divisão sexual do
trabalho. Por isso, incluir as relações de gênero como um dos fatores
determinantes da segurança alimentar e nutricional é condição necessária para a
cidadania das mulheres e a garantia do direito à alimentação adequada e
saudável.
A Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional adotou esta
perspectiva ao inscrever entre seus objetivos, “articular programas e ações de
diversos setores que respeitem, protejam, promovam e provejam o direito humano
à alimentação adequada, observando as diversidades social, cultural, ambiental,
étnico-racial, a equidade de gênero e a orientação sexual, bem como
disponibilizar instrumentos para sua exigibilidade” (Art. 4º, inciso II, do
Decreto 7.272, de 25.08.2010, que regulamenta a Lei 11. 346, de 15.09.2006).
Nos últimos anos, o quadro de segurança alimentar melhorou no país. A
desagregação dos dados da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia),
que mensura a percepção dos moradores de referencia dos domicílios em relação
ao acesso aos alimentos, mostra-nos, entre 2009 e 2013, uma variação positiva
de 13,7% nos domicílios chefiados por mulheres. Mas a prevalência da
insegurança alimentar grave, ou seja, a vivência de situações de fome, persiste
nestes domicílios em todas as regiões do país. E a comparação com os dados dos
domicílios chefiados por homens mostra-nos que o percentual de 3,9% entre as
mulheres é pior do que o índice dos domicílios chefiados pelos homens da ordem
de 2,8%, e também pior do que a média nacional que equivale a 3,2%, segundo
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2013.
A redução da pobreza e, sobretudo da extrema pobreza no país veio acompanhada da
redução da insegurança alimentar e da fome. As desigualdades que permanecem
mostram a importância de políticas afirmativas que respondam às diferentes
realidades das mulheres.
As condições de acesso, controle e manejo dos bens da natureza e de bens materiais
pelas mulheres, bem como a participação nos processos de tomada de decisões no
interior da família, e nos espaços organizativos constituem-se em variáveis
fundamentais para o desenho das políticas públicas com a abordagem de gênero.
Historicamente, as mulheres do campo, das florestas e das águas, além de menor
acesso à terra e território, financiamentos, assistência técnica e
comercialização dos produtos, vivem também limitações para suas liberdades
pessoais e autonomia econômica. Simultaneamente continuam lutando pelo
reconhecimento de sua identidade. As pescadoras, por exemplo, protestam contra
normativas no âmbito das medidas de ajuste que ferem seus direitos. Questionam
a definição de trabalhadoras de apoio à pesca, em detrimento do reconhecimento
de sua identidade como pescadoras. Afirmam que “esta categoria hierarquiza e
desvaloriza o trabalho das mulheres pescadoras, e além disso coloca em risco a
autonomia, agravando a vulnerabilidade social e econômica de milhares de
mulheres pescadoras” (Carta das Pescadoras à Presidenta Dilma Rousseff,
Articulação Nacional das Pescadoras, junho de 2015).
Em outros contextos, muitas vezes, técnicos e agentes públicos naturalizam a
visão sobre a família como se fosse homogênea, ignorando as relações sociais de
gênero. Assim procedendo, acabam por identificar como interlocutor do Estado o
homem como “chefe de família”.
O papel das mulheres continua também sendo invisibilizado ou contestado mesmo
quando elas assumem uma posição de liderança. A busca de novas alternativas de
alimentação e transformação dos alimentos, visando o enriquecimento da dieta
alimentar, e geração de renda, com a diversificação dos sistemas alimentares e
processos de transição da agricultura convencional para a agroecológica, de
forma recorrente tem sido de iniciativa das mulheres. Mas ainda se vê pelo país
casos de violência patrimonial por parte dos maridos que jogam veneno em suas
plantações por discordarem de sua decisão.
A busca de uma maior independência financeira para as mulheres rurais, assim
como já alcançado em grande parte pelas mulheres urbanas, faz parte de sua
agenda. As mulheres, especialmente nas cidades, integraram-se no mercado de
trabalho. Isto é uma conquista. Mas a visão patriarcal que vincula o trabalho
das mulheres às mudanças do perfil alimentar da população precisa ser
contestada.
Há programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que podem favorecer a autonomia
econômica das mulheres. Em muitos casos, esses programas redinamizam e
diversificam o processo produtivo e favorecem a valorização das culturas
alimentares com espécies e variedades que em alguns contextos estavam sendo
deixados de produzir, como, por exemplo, abóbora, inhame, batata-doce, cará, fruta
etc.
É importante considerar também que as práticas de autoconsumo constituem-se em
estratégia para a melhoria na qualidade da alimentação, redução das despesas
com alimentos e aumento da autonomia da família frente ao mercado. As mulheres
têm reivindicado seu fortalecimento através de propostas de programas de
fomento e crédito.
A 5ª Conferencia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada no
ano passado, com o lema “Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e
soberania alimentar”, contou com a participação de 54% de mulheres.
Na Carta Política há uma manifestação clara de compromisso com os direitos das
mulheres: “As mulheres das cidades, do campo, das águas, da floresta têm
atuação estratégica para garantir a segurança alimentar e nutricional, pois são
produtoras de alimentos. No entanto, as desigualdades de gênero persistem:
ainda hoje a imensa maioria das mulheres vivencia triplas jornadas de trabalho
e mulheres negras sofrem dupla discriminação, de gênero e de raça”.
Ainda segundo a Carta: “Enfrentar essas e outras injustiças requer o combate ao
racismo e ao sexismo, assim como efetivar políticas específicas de educação e
formação que desnaturalizem a divisão sexual do trabalho e a violência de
gênero, de modo a viabilizar a construção de novos paradigmas de
responsabilidades compartilhadas entre homens e mulheres nos âmbitos público e
privado”.
Por fim, a Carta Política da 5ª Conferência fala da urgência em “conquistar
novos direitos e aprofundar programas e ações que viabilizem o trabalho em
condições equivalentes aos homens, a construção e ampliação de equipamentos
públicos e de infraestrutura de produção que promovam as mulheres e que
possibilitem a sua autonomia econômica e política, aí incluindo abrigos e
delegacias para situações de violência doméstica, creches, lavanderias
coletivas, cozinhas e restaurantes comunitários, entre outros equipamentos.
Faz-se igualmente necessário avançar nas estratégias de atenção à saúde da
mulher”.
Precisamos ouvir as mulheres e reconhecê-las como sujeitos políticos portadoras
de novos sentidos para as propostas de políticas e continuarmos caminhando na
construção da soberania e segurança alimentar e nutricional com igualdade de
gênero.
Maria Emília Pacheco é antropóloga e presidenta do Consea.
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