Faz 16 anos (9 de agosto) que estamos sem Herbert de
Souza, o Betinho, um dos fundadores do Ibase. Neste mês, amigos contam
histórias sobre ele em crônicas.
Historiadora, professora do Cpdoc/FGV
Mensagem ao Betinho
Candido Grzybowski*
Diretor do Ibase
==================
Ex-diretor do Ibase e consultor para o tema de segurança alimentar e combate à pobreza
São poucas as figuras que reproduzem essa identificação, como a que
Betinho construiu. Mas quando ela ocorre, as bases ficam muito sólidas. É
a identificação do líder como pessoa. Que erra, sofre, fica doente, mas
acerta, festeja e se ergue. É a história do bêbado e do equilibrista, a
do Betinho, mas também a nossa história.
Betinho e as manifestações
Dulce Chaves Pandolfi*Historiadora, professora do Cpdoc/FGV
No momento em que milhares de brasileiros estão nas ruas questionando
formas tradicionais de se fazer política e exigindo mais cidadania,
nunca é demais lembrar de Herbert José de Souza, conhecido como Betinho,
que morreu no dia 9 de agosto de 1997, aos 61 anos de idade.
Ao longo da sua intensa trajetória e através de diferentes caminhos,
Betinho buscou, de forma incessante, construir uma sociedade mais justa e
solidária. Nos anos 1950, atuou no movimento estudantil. No início dos
anos 1960, foi um dos fundadores da Ação Popular, uma organização de
leigos católicos cujo objetivo era transformar as estruturas do país. Em
1964, perseguido pela ditadura militar que se instalara no Brasil,
Betinho continuou na militância e passou a viver na clandestinidade. Em
1971 partiu para o exílio. Morou em diversos países. Em 1979, com a
decretação da anistia, retornou ao Brasil e em 1981 foi um dos
fundadores do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas, instituição que dirigiu até o final da sua vida. Sempre
atuando em parceria com outras instituições, organizou diversas
campanhas públicas.
A sua aposta maior era na cidadania, condição essencial para
fortalecer a democracia. Segundo Betinho, “governo só anda empurrado. O
governo não anda, não tem motor próprio e quem empurra o governo, é a
cidadania”. Entre as inúmeras campanhas públicas que idealizou, a que
mais produziu impacto foi a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e
pela Vida, iniciada em 1993, cuja principal motivação era a crença de
que a democracia era incompatível com a miséria, situação na qual viviam
milhões de brasileiros. Em 1996, ocasião em que o Rio de Janeiro era
uma das cidades candidata a sediar as Olimpíadas Internacionais que
iriam ocorrer em 2004, Betinho lançou uma nova campanha: a Agenda Social
Rio 2004. A sua ideia era aproveitar o clima de mobilização existente
em função da candidatura do Rio de Janeiro e envolver diversos setores
da sociedade e do Estado em torno de cinco metas que deveriam ser
alcançadas em 2004: educação de qualidade para todas as crianças e
jovens; todas as crianças bem alimentadas; favelas urbanizadas e
integradas à cidade; ninguém morando na rua; e esporte e cidadania
jogando no mesmo time. Segundo Betinho, “se for só para fazer carnaval,
prefiro que os Jogos Olímpicos sejam realizados na Bahia. Ou que seja em
Tóquio, Miami, Roma ou outra cidade bem mais estruturada”.
Um dos seus sonhos era fazer do Rio uma cidade onde não houvesse
meninos nas ruas, onde o “morro” estivesse integrado ao “asfalto”, onde
toda a população tivesse acesso à saúde e à educação. Em março de 1997, o
Rio de Janeiro perdeu a disputa para sediar as Olimpíadas. Poucos meses
depois, Betinho morreu. Hoje, passados 16 anos da sua morte, a proposta
da Agenda Social Rio permanece atual. As metas apontadas naquela
ocasião não foram atingidas. Por isso, suas bandeiras de luta continuam
na ordem do dia. Os milhares de manifestantes que estão nas ruas
cobrando mais cidadania, também estão exigindo explicações sobre os
gastos com a Copa do Mundo, que irá ocorrer em 2014 e com as Olimpíadas,
em 2016. Assim, como sugeriu Betinho “temos que aproveitar essa rara
oportunidade para chamar a atenção de todos e mostrar que podemos mudar a
história da nossa cidade.” Esse é o nosso grande desafio!
Candido Grzybowski*
Diretor do Ibase
Caro Betinho,
Como você está? Onde você anda? Há tempos não temos notícias suas.
Volta e meia a saudade bate forte. Seus amigos e amigas vem ao Ibase
atrás de notícias suas. Imagino que você está fazendo o que mais gostava
quando estava aqui com a gente, numa roda de análise de conjuntura com
seus companheiros e companheiras daí, com boa cerveja e muita
cumplicidade. Espero que você tenha tempo para acessar a internet e que
está seguindo as redes sociais daqui do Planeta Terra, a grande
novidade político-cultural neste início do século XXI. Em todo caso
mando algumas notícias sobre nós, sempre tendo presente o seu
ensinamento de que a reflexão política alegre, prazerosa e compartilhada
entre amigos e amigas é a melhor forma de encarar os desafios da vida e
viver plenamente.
Sabe Betinho, estamos vivendo no Brasil e no mundo um momento onde o
que parecia sólido se desmancha, as ideias e certezas saem de seus
lugares um tanto dogmáticos e o desafio é repensar quase tudo. Momento
de muitas possibilidades, sem dúvida. De muitos riscos, também. Será que
seremos capazes de radicalizar a democracia? Nós, aqui no Brasil, desde
junho deste ano, trouxemos a democracia de volta à sua origem, às ruas,
ao espaço público. Parece que se esgotou aquela onda de democratização
gestada contra a ditadura e o desafio é criar uma outra com base na
cidadania, a verdadeira força instituinte e constituinte, como você nos
ensinou. Você foi um personagem de frente no processo, sobretudo com a
sua liderança de memoráveis campanhas cívicas, a partir da cidadania e
com apoio do Ibase – a organização de cidadania ativa que você criou na
volta do exílio, em 1981.
Depois que você foi morar num lugar distante do cosmos, se passaram
várias coisas por aqui. Não foi fácil enfrentar a globalização
neoliberal, que pôs tudo à venda em nome do mercado. O cassino tomou
conta de nossas vidas, em quase todos os países. Grandes conglomerados
econômico-financeiros passaram a ser o poder real no mundo e
transformaram o Fórum Econômico Mundial, na estação de esqui de Davos,
no seu espaço de celebração de hegemonia. Mas a rebeldia cidadã deu
passos gigantes neste período. Ainda em fins de 1999, em Seatle, a
cidadania conseguiu parar as negociações lideradas pela OMC. Surgiam
sinais de uma cidadania planetária. O Fórum Social Mundial foi a melhor
resposta que demos ao sistema. Em fins de janeiro de 2001, nos dias do
FEM de Davos, criamos o primeiro FSM em Porto Alegre. A partir daí
tivemos uma década de multiplicação de Fóruns como “usinas de ideias” da
cidadania, num novo modo de fazer política participativa, com respeito e
valorização da diversidade social e da multiplicidade de visões e
perspectivas, sem protagonismos dogmáticos. O Ibase apoiou corajosamente
a iniciativa desde o seu começo. Você, Betinho, deixou pistas para o
Ibase entrar nesta aventura e acho que até nos saímos bem.
Mas no mundo, esta não foi a única resposta à globlização neoliberal.
O fundamentalismo de mercado, aplastador das diferenças culturais e
acima das sociedades e seus territórios, gestou fundamentalismos
religiosos e grupos terroristas. Em 2003, um espetacular ato terrorista,
jogando grandes aviões sequestrados como bombas, nos EUA, destruiu as
Torres Gêmeas de New York – aquelas que 1994 vimos junto quando
passeamos pela Wall Street – e um pedaço do próprio Pentágono, na
capital. Seguiram-se guerras de retaliação decididas pela potência
econômica e militar dos EUA, particularmente contra países de
predominância islâmica. Guerras inacabadas e de muito sacrifício em
vidas e riquezas.
Enquanto isto, na região da América do Sul surgiu o maior polo de
governos com alinhamento para a esquerda. No Brasil, em outubro de 2002,
finalmente, elegemos Lula presidente. Você teria gostado de viver este
momento. Lula chegou anunciando “Fome Zero”, ainda em janeiro no FSM em
Porto Alegre. “Quem tem fome tem pressa”, você dizia. Pois bem, o
programa vitrine do Governo Lula se tornou o Bolsa Família, que hoje
chega a quase 13 milhões de famílias brasileiras. Sua pregação cidadã
valeu, Betinho! Dilma Rousseff, talvez você não a conheça, foi indicada
por Lula eleita em 2010. O Governo Dilma tem o “Brasil sem Miséria” como
carro chefe, fazendo um trabalho de busca ativa dos não cadastrados no
Bolsa Família, pois são tão miseráveis que nem se consideram titulares
de um direito como este, de ajuda mensal pública.
Betinho, seria longo demais falar do que os governos petistas
conseguiram fazer com sua proposta de condicionalidades sociais ao
crescimento econômico. Aumentou a cobertura da Previdência, cresceu e
muito o salário mínimo, facilitou-se e popularizou-se o crédito para
compra de bens de consumo, retomou-se a construção de casas populares
pelo “Minha Casa Minha Vida”. Tudo isto acabou estimulando a retomada do
crescimento econômico e o Brasil passou a ser visto como um dos grandes
países “emergentes”, ao lado da China – hoje segunda economia do mundo
em termos de PIB –, Índia, Rússia e África do Sul, formando o BRICS.
Só que tudo isto sem realmente mudar a essência do modelo de
desenvolvimento brasileiro. Pelo contrário, retoma-se o velho
desenvolvimentismo, agora com condicionalidades sociais. É uma espécie
de mudança para não mudar de fato. Reforma Agária, por exemplo, talvez a
sua primeira grande campanha cívica, ficou para calendas gregas, pois o
grande agronegócio é saudado e valorizado como expressão deste Brasil
emergente. Mas temos a questão indígena e dos povos das florestas não
resolvido, as favelas continuam sendo consideradas não cidade, os
grandes projetos estão de volta, bem maiores do que quando você
estimulou a produção e publicação do livro sobre o Grande Carajás e do
outro sobre Os Cerrados. Por sinal, a Vale foi doada no processo de
privatização ainda do Governo Fernando Henrique Cardoso e hoje é saudada
como grande exportadora de minérios. A montanha de Carajás está sendo
transferida quase toda para a China. Tem sentido isto, Betinho?
O PT, para ganhar, aceitou as regras do jogo, pois como você sabe
temos uma questão de fundo não tocada verdadeiramente pelo Constituinte
eleita pela regras de transição acordadas com a ditadura militar: a tal
governabilidade. Nosso Congresso é uma federação de interesses privados e
não uma representação da cidadania no pleno sentido. Para governar, é
necessário fazer uma coalizão de partidos e forças que amarra o governo.
Ao aceitar tais regras, o PT mudou mais do que o país. Eu considero
insustentável o conjunto de políticas sociais montadas pelos governos
petistas, pois dependem do crescimento, ou seja, dos interesses e
estratégias dos grande grupos nacionais. Por sinal, eles tem dado muito
apoio ao governo e tem sido compensados. O exemplo maior é agora na
construção dos estádios para a Copa de 2014. Aliás, a Copa das
Confederações, evento preparatório para o mundial do ano que vem, agora
em junho, foi o contexto em que a cidadania explodiu nas ruas
contestando as prioridades dos governos federal, estadual e municipal.
Veja só, Betinho, voltamos a exigir com força direitos básicos de
cidadania: mobilidade, saúde, educação.
Estamos neste contexto. A mobilização se alastrou como pólvora e
pegou toda a institucionalidade política de surpresa. São jovens,
Betinho, que estão à frente das mobilizações. Suas propostas e
estratégias não são mediadas por movimentos sociais organizados ou
partidos, mas através das redes de relacionamento. Uma novidade política
que entrou para valer no Brasil e no mundo. As indignações e
insurgências vem acontecendo de forma surpreendente por toda parte,
derrubando governos até como na Primavera Árabe.
É por isto que penso ser necessária uma nova e mais radical onda de
democratização. Bem, como a conjuntura política volta a me inspirar,
esqueci de lhe contar que em 2008 o mundo inteiro mergulhou numa crise
daquelas como o capitalismo gerou em 1930. A globalização neoliberal, na
minha opinião, está ferida de morte. Mas isto não quer dizer que temos
solução à vista. Na forte Europa, por exemplo, a resposta ainda
articulada por governos subservientes ao grande capital financeiro, tem
sido de desconstrução do Estado de Bem Estar Social, com total
flexibilização de direitos cidadãos conquistas ao longo da história de
pós-guerra. Vejo que não é descartável a hipótese de uma solução pelo
pior, no mundo como aqui na região e no Brasil.
Precisaríamos de você aqui para nos ajudar a ver o que fazer e como.
Voltamos a nos reunir mais regularmente para análises de conjuntura.
Ainda pouco na minha opinião. Mas você nem imagina o sacrifício que foi
imposto às organizações do campo em que o Ibase atua. Nós mesmos
precisamos nos refundar, pois na volta muitas organizações já fecharam.
No Ibase vemos muita coisa a fazer, mas não temos ainda resposta sobre o
como financiar a militância cidadã do tipo que o Ibase faz. Este é
necessariamente um esforço de conjunto, mas somos levados a buscar
respostas individuais. Acredite, Betinho, faremos tudo para preservar
renovando o seu projeto de um Ibase colado na cidadania. Para se
contrapor aos indicadores econômico-financeiros, o Ibase está
desenvolvendo um sistema de indicadores de cidadania ativa. A coisa já
está de pé. Agora precisamos ganhar o espaço público para a proposta.
Acabei sendo longo nesta mensagem para você. No fundo, queria que
você sentisse como nós, a direção e a equipe do Ibase, os associado(a)s
do Ibase, os membros dos Conselhos da instituição, a grande rede de
amigos do Ibase, todos estamos empenhados em responder aos desafios que
nos são jogados no colo ou aqueles que pensamos que vale a pena trazer
ao debate público, coisa que você foi mestre em fazer.
Obrigado por tudo, Betinho! Espero que você tenha gostado do livro
que Dulce Pandolfi e …(escapou o nome) produziram no ano passado, “O
Brasil de Betinho”. Aqui na terra está fazendo o maior sucesso esta
associação entre suas ideias, verdadeiras pérolas políticas, sobre os
momentos da conjuntura brasileira ao longo de sua vida.
Será que dá para você voltar um dia? Ainda continuo fazendo o cuscus e o churrasco de carneiro que você gosta.
Com aquele abraço,
Cândido
Frágil e forte
Chico Menezes*Ex-diretor do Ibase e consultor para o tema de segurança alimentar e combate à pobreza
Não me lembro mais em que ano foi. Provavelmente estávamos no auge da
Campanha contra a Fome. Betinho chamou uma reunião com o Jurandir
Freire, psicanalista de extrema sensibilidade social. Eram daquelas em
que todos se sentavam em volta de uma mesa, Betinho abria a reunião
dizendo porque a tinha convocado, o convidado falava e depois todos
discutiam. Reunião da marca Ibase.
Dias antes eu fui de Metrô, com Betinho, de Botafogo para o Centro. O
que vi dentro do carro do Metrô me espantou. Quando Betinho entrou, as
pessoas foram tomadas por um enlevo indescritível. Muitos queriam se
aproximar e pegar. Não era só assedio, era um clima de forte emoção. No
final, quando descemos, uma salva de palmas, para aquele homem que
aparecia na televisão falando do beija-flor.
Mas voltando à reunião com o Jurandir. Acho que estimulado pelo
psicanalista e sua capacidade de ver as coisas pelo ângulo da
subjetividade, me recordei do episódio do Metrô e fiquei pensando como
se explicava aquilo e tudo que vinha ocorrendo naqueles tempos. Uma
figura já tão frágil fisicamente e com aquela capacidade de mobilizar
tanta gente, como se dava com o movimento da Ação da Cidadania. Com uma
voz rouca e comedida, mas que se fazia escutar com suas analogias, às
vezes com suas ironias, com a fala que vinha do coração. Não restam
dúvidas sobre sua sabedoria política incomum, com a capacidade que tinha
de ver além do que é imediatamente visível na política. Mas certamente
havia mais coisa para explicar a enorme empatia que transmitia.
Fiquei pensando no quanto havia de
identificação do povo brasileiro com Betinho. Era essa sensação
misturada de fragilidade e força, o que possivelmente estabelecia o laço
mais forte entre a pessoa mais simples e Betinho, entre o jovem mais
aguerrido e Betinho, entre a velhinha mais cansada e Betinho. Vivíamos
os tempos do início da farra neoliberal. O povo brasileiro sofria, no
dia a dia, a demonstração de sua fragilidade. Conquistamos as eleições
diretas e o Collor foi eleito. As empresas estatais deviam ser
privatizadas. Se alguém estava desempregado, a culpa era individual. Mas
ao mesmo tempo, Collor entrou e foi mandado embora. Os trabalhadores
resistiam à venda do patrimônio público. Não se aceitava a fome como uma
fatalidade e lutava-se contra ela. Éramos frágeis, mas tínhamos força,
parecidos com Betinho. Ele era o que poderíamos ser.
Comentários