Vai ficar aí no
sofá?
Elisabetta Recine*
A rápida e avassaladora escalada do excesso de
peso e da obesidade e a deterioração da qualidade da alimentação da população
brasileira não deixam dúvida: já temos uma situação de emergência instalada.
Apenas para recordar, resultados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do
IBGE de 2008/2009 mostraram que 12% das nossas meninas e 17% dos nossos meninos
entre 5 e 9 anos são obesos. Se considerarmos o excesso de peso, 32% das
meninas e 35% dos meninos estão nessa situação. Entre adolescentes, 6% das garotas
estão obesas e 22% com excesso de peso. Dos garotos, 4% obesos e 19% com
excesso de peso. E, se considerarmos toda a população, 75 milhões de pessoas
estão com excesso de peso, e, dessas, quase 6 milhões são crianças entre 5 e 9
anos.
A situação pode ser entendida pelos padrões
alimentares atuais. A mesma pesquisa do IBGE mostrou que, apesar de ainda
encontrarmos entre a população o consumo da chamada "tradicional dieta
brasileira" (a refeição que tem como base o bom e velho arroz com feijão),
já é grande o consumo de alimentos industrializados com baixo teor de
nutrientes e alto teor calórico. Se os resultados recentemente divulgados sobre
as quantidades de consumo de açúcar entre jovens preocuparam, o que dizer dos
resultados da POF que comprovaram que essa mesma situação de consumo excessivo
está presente em 61% da população? O problema não é "apenas" o alto
consumo de açúcar entre os jovens. Entram na conta outros produtos nada
saudáveis, como biscoitos recheados, linguiça, salsicha, mortadela, sanduíches
e salgados e também baixo consumo de feijão, saladas e verduras.
Comemos mal e em excesso. O resultado é lógico:
engordamos. Pior: aumentamos - e muito - a probabilidade de acrescentarmos a
essa doença básica, a obesidade, outras tantas como diabete, hipertensão,
problemas cardíacos. Não precisamos mais envelhecer para que elas se
apresentem. Jovens e crianças já vivem o cotidiano de quem precisa cuidar de
uma doença crônica, que se desenvolve silenciosamente e compromete o corpo e a
qualidade de vida.
Na outra ponta desse cenário, um estudo recente
calculou que, em 2011, R$ 487,9 milhões foram gastos pelo Sistema Único de
Saúde em ações de tratamento da obesidade e no cuidado de 26 doenças
relacionadas a ela. Então, neste momento é natural a pergunta: se a obesidade é
um problema tão grave tanto para os indivíduos como para a sociedade, se suas
consequências comprometem a qualidade de vida e a saúde, por que assistimos
pacientemente ao agravamento da situação? Nada pode ser feito?
A obesidade é uma doença com múltiplos
determinantes. Parte deles está na esfera privada, mas, na verdade, o que
vivemos atualmente é causado basicamente pela sua dimensão social. Ao longo dos
anos ocorreram mudanças estruturais na maneira como a sociedade e as famílias
providenciam sua alimentação. Destaco aqui o processo que levou o alimento a
deixar de ser um bem para ser uma mercadoria, negociada em mercados futuros e
com seu preço controlado em negociações especulativas, nas quais o menos
importante é seu propósito original: alimentar pessoas, garantir e promover a
vida. O setor de alimentos é concorrido, dezenas de produtos são lançados
anualmente, movimentando o mercado publicitário e a mídia, moldando gostos e
necessidades.
Enfrentar, desacelerar, reverter os números do aumento
de peso não é responsabilidade de um único setor ou sujeito social. Família e
escola são importantes para a formação, valorização e prática de hábitos
saudáveis. No entanto, sem mudanças estruturais esse quadro pouco será
alterado. As mudanças que realmente importam dependem de medidas públicas que
intervenham nas causas básicas do problema - entre elas, dificuldades de acesso
tanto físico como financeiro a alimentos saudáveis. Esse problema é tão grave
que foi criada a expressão "desertos alimentares", que são regiões,
mesmo nas grandes cidades, onde o acesso a alimentos frescos, saudáveis e
baratos é muito difícil.
A alimentação da criança pequena precisa ser
protegida, primeiro incentivando o aleitamento materno exclusivo até os seis
meses de idade, depois dando informação e apoio às mães e cuidadores, para que
seja oferecida a maior variedade possível de alimentos saudáveis. Ambientes
públicos como escolas não podem promover e comercializar alimentos não
saudáveis. As estratégias de marketing de alimentos, principalmente aquelas
dirigidas às crianças, precisam ser reguladas, assim como a qualidade
nutricional dos alimentos. Além disso, é nosso direito conhecer a composição do
que compramos para comer. Os rótulos dos alimentos devem ser claros e diretos,
possibilitando a comparação entre produtos para uma escolha melhor. Não é o que
acontece. Muitas vezes as etiquetas mascaram o que realmente está sendo
consumido e, pior, iludem sobre uma qualidade imaginária, impossível. Alguém
que compra uma caixinha de "suco natural" imaginaria que está
comprando colheres e colheres de açúcar?
Nenhuma dessas medidas isoladamente é suficiente.
O problema requer ações de diferentes naturezas e setores que sejam implantadas
de maneira articulada. Aqui poderíamos ter uma boa notícia - ou quase. Em
outubro de 2012, a Câmara Interministerial, que congrega 19 ministérios,
apresentou ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que
assessora a Presidência da República, a proposta de um Plano Intersetorial de Prevenção
e Controle da Obesidade. Ele contempla seis eixos de ação, que deverão incidir
no aumento de produção e oferta de alimentos saudáveis, nas estratégias de
informação e educação, na promoção de modos de vidas saudáveis nas escolas e
até na assistência social, regulação e controle da qualidade e inocuidade dos
alimentos e atenção integral à saúde do indivíduo com excesso de
peso/obesidade.
Era uma proposta para ser aprovada pelo conjunto
de ministérios até o final de 2012. Até o momento isso não aconteceu. Enfrentar
a obesidade requer medidas capazes de tirar a todos nós, cidadãos, setores da
sociedade e governo, de nossas áreas de conforto. Grandes interesses precisarão
ser enfrentados e lógicas de lucro precisarão ser alteradas em nome da
qualidade de vida que queremos e temos o direito de ter. Vamos ficar sentados
na frente da TV, com uma lata de refrigerante na mão, assistindo ao retrato do
que já está dentro de nossas casas, ou vamos nos mobilizar contra isso?
*Elisabetta Recine é nutricionista, docente na
Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Observatório de Políticas de
Segurança Alimentar e Nutricional (Opsan) e conselheira do Consea. Este artigo
foi veiculado no jornal O Estado de S. Paulo em 14.04.2013
Opiniões e
conceitos emitidos em artigos assinados não expressam necessariamente a posição
institucional do Conselho. A veiculação tem o objetivo de estimular o debate
sobre temas de interesse do Consea, respeitando as linhas de pensamento e o
pluralismo de ideias.
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