Camponesas para a soberania alimentar
Por Lívia Duarte
Na América Latina e Caribe as agricultoras
familiares produzem 45% dos alimentos consumidos. Inegável, portanto, a
importância do trabalho delas para o cotidiano. Nesta entrevista, Vanessa
Schottz (da Fase – Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional) e
Elisabeth Cardoso (do CTA/ZM – Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da
Mata) lembram que este trabalho é silencioso, invisível e, também por estas
razões, desvalorizado por boa parte da sociedade.
As entrevistadas, que são do Grupo de Trabalho de
Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), falaram também de
políticas públicas para mulheres no campo e avaliaram a Cúpula dos Povos.
Durante o evento, a participação das mulheres chamou a atenção desde a marcha,
que abriu a série de manifestações que tomaram as ruas do Rio de Janeiro, até
as diversas atividades autogestionadas realizadas por elas.
Foi a partir desses espaços que a discussão sobre
o papel das mulheres na sociedade hoje – e naquela que os grupos querem
construir – foi tomando corpo até a afirmação do feminismo como ‘instrumento da
construção da igualdade’ na Declaração Final da Cúpula. O documento incluiu
também a “autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade, e o direito a
uma vida livre de violência”, como premissas a serem defendidas pelos
povos. Saiba mais sobre a luta das mulheres camponesas na entrevista
realizada originalmente para o programa Planeta Lilás, organizado por
militantes feministas na Rádio Cúpula dos Povos:
Qual papel das mulheres na agricultura
camponesa?
Vanessa Schottz – Esta pergunta é
importante porque nos dá a oportunidade de dizer que as mulheres não ajudam na
agricultura, as mulheres trabalham na agricultura. Elas estão na produção de
alimentos. Elas estão no resgate e na conservação das sementes. Elas estão nos
processos de resistência nos territórios, contra o agronegócio. Elas estão no
cuidado com a alimentação. As mulheres assumem uma papel importante – e
protagonista – neste momento em que estamos discutindo sustentabilidade, mas também
estamos discutindo soberania alimentar. As mulheres têm um papel fundamental
tanto na bandeira de luta da soberania alimentar quanto nas práticas
agroecológicas e nas práticas de consumo sustentável. Elas estão em vários
espaços, fazendo as suas lutas no dia-a-dia, e também se organizando e lutando
para garantir a visibilidade do seu trabalho.
Elisabeth, você pode dar um exemplo das
mulheres lá da Zona da Mata, sobre o papel que elas cumprem, para entendermos
melhor essa afirmação da Vanessa?
Elisabeth Cardoso – Na Zona da Mata, em
Minas Gerais, temos um bom exemplo. Lá é forte a crença de que o que sustenta a
região é a produção de café. As mulheres estão presentes – e são fundamentais –
na produção do café. E isso é sempre bom lembrar. Mas elas têm descoberto
recentemente ter um papel muito mais importante como produtoras de alimentos.
Elas coordenam todo o trabalho de produção dos quintais: das plantas, das
hortas e da produção de animais. No nosso trabalho com agroecologia na região,
criamos um calendário para que elas anotassem produção e consumo. Fizemos isso
porque geralmente não se valoriza muito a produção para o autoconsumo. E elas
se assustaram depois de cerca de três meses quando perceberam que o equivalente
de renda gerado pelo autoconsumo é superior à renda gerada pelo trabalho com o
café. Isto é emblemático em relação à história da produção das mulheres. O
trabalho delas acaba invisível porque o autoconsumo não está no PIB (Produto
Interno Bruto) e não é contabilizado em nenhuma economia – nem para os
municípios, nem para a família. Perceber que o trabalho delas gerava mais renda
que o café foi importante para elevar a autoestima e para que elas se
percebessem como fundamentais no trabalho de produção. Se não fossem as
mulheres fazendo esse trabalho de produção para o autoconsumo, a agricultura
familiar no Brasil não se sustentaria. A renda da agricultura familiar hoje na
comercialização de produtos, mesmo acessando os mercados institucionais, só é
suficiente por causa da produção familiar para o autoconsumo. Os agricultores
familiares compram muito pouca coisa fora das suas propriedades. Na Zona da
Mata de Minas temos valorizado bastante este fato, não só no que se refere à
produção de alimentos, mas também com a produção de medicinas naturais, muito
importante para a manutenção da saúde das famílias.
Uma das principais pautas desta Cúpula dos
Povos foi a luta contra a “mercantilização da vida”. E aí falamos não apenas da
natureza, das florestas, dos serviços ambientais, mas também dos modos de vida.
Valorizar a produção para o autoconsumo é um jeito de fugir do mercado?
Vanessa – É isso. E se a gente parar
para pensar, não existe nada mais radical na luta por soberania alimentar do
que a produção para o autoconsumo. Porque é a via da alimentação sem passar
pelo mercado. E é justamente isso que o mercado tenta desconstruir de várias
formas. Uma é a ocupação dos territórios com monocultura – porque, sem
diversidade, as famílias ficam dependentes da compra de produtos nas grandes
redes de supermercado. Outra maneira é a publicidade que estimula o consumo dos
produtos industrializados. Então essa prática do autoconsumo, que está muito
ligada ao trabalho das mulheres, é fundamental no movimento de resistência
contra o agronegócio, contra o uso do território para a produção de monocultivo
para a exportação. É uma prática que precisamos valorizar e dar visibilidade. E
é importante dizer também que as mulheres não estão apenas trabalhando para o
autoconsumo. Entre as mulheres que compõem o GT de Mulheres da ANA vemos que um
g rande número comercializa sua produção para feiras e também para o mercado
institucional de alimentos via PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e Pnae
(Programa Nacional de Alimentação Escolar), apesar de enfrentarem muitas
dificuldades. A questão é que as políticas públicas, da forma como estão
estruturadas, não consideram o trabalho e as necessidades das mulheres.
E vocês podem dar exemplos que explicam por
que essas politicas são insuficientes para atender às necessidades das
agricultoras?
Vanessa – São várias questões. Por
exemplo, para que qualquer agricultor ou agricultora acesse as políticas
públicas para agricultura familiar no Brasil é necessário acessar o “Documento
de Acesso e de Aptidão ao Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar)”, que chamamos de DAP. O DAP tem uma série de problemas,
e passa pela lógica de que é um documento “familiar”, no qual cabe sempre ao
homem o protagonismo. Então, se na família o homem é professor ou agente comunitário
de saúde e a mulher é agricultora, ela não consegue ter sua profissão
reconhecida. Ou seja, muitas mulheres estão produzindo, não conseguem acessar
esse documento e, portanto, não conseguem ser reconhecidas como sujeito por
essas políticas. Outras tantas vezes, os homens apresentam os documentos e
recebem o dinheiro pela esposa. Achamos que isso é muito ruim, pois além de
impedir a visibilidade do trabalho delas, impede o acesso à renda, um el emento
que consideramos importante para o processo de construção de autonomia.
Acreditamos que autonomia econômica e autonomia política são vias que precisam
andar juntas para permitir uma relação de igualdade entre homens e mulheres.
Vocês estão falando a partir do GT de
Mulheres da ANA. Beth, você pode explicar porque existe e como funciona este
Grupo de Trabalho?
Beth – A ANA é uma rede formada por
redes regionais e movimentos sociais de todo o Brasil, que é organizada
internamente por Grupos de Trabalho. O Grupo de Trabalho das Mulheres é um
espaço de auto-organização, a partir do qual refletimos sobre questões de
gênero, por exemplo, a partir do nosso olhar sobre as políticas públicas.
Também fazemos um trabalho de sistematização de experiências de mulheres na
agroecologia que ajuda nesta reflexão. A partir do GT de Mulheres refletimos
também sobre a própria ANA. Para conhecer melhor a articulação vale a pena ver
a página na internet: www.agroecologia.org.br.
Ali é possível encontrar uma publicação do GT de Mulheres com as experiências
sistematizadas na região Nordeste – também estamos sistematizando experiências
do Sul e da Amazônia, mas ainda não estão publicadas. É um trabalho muito rico
porque a partir das experiências das mulheres aprendemos mu ito. Inclusive,
acho que isso é uma reflexão para a ANA como um todo. Uma coisa que a gente se
esforça também é para que em todos os espaços da ANA haja participação das
mulheres. Acreditamos que a articulação é um espaço democrático e por isso
ficamos até tristes se em um evento misto não haja, pelo menos, 50% de
mulheres.
E o que acharam da Cúpula dos Povos? Vai
fazer alguma diferença no futuro?
Vanessa – Eu acho que a Cúpula dos Povos
cumpriu o seu papel de dar visibilidade, primeiro às críticas que fazemos às
falsas soluções do capital com o nome de “economia verde”, com a justificativa
de superar uma crise que “eles” próprios causaram. Ao mesmo tempo, mostramos
que existem alternativas viáveis sendo construídas pela sociedade, pelas
mulheres, pelos índios, pelos camponeses. Então, eu acho que a Cúpula deixou
essa mensagem. E deixa também uma mensagem importante de que sustentabilidade,
diversidade e soberania alimentar. São temas e bandeiras de luta que precisamos
cuidar para que não sejam apropriadas pelo capital. A gente pôde ver aqui
perto, no Píer Mauá, uma exposição montada pelo agronegócio como evento oficial
da Rio+20, onde dizem fazer agricultura sustentável, onde dizem contribuir para
a preservação do meio ambiente, se apropriando de bandeiras de lutas da
sociedade com uma cara-de-pau impressionante. E para nós es tá posto o desafio
de dialogar com o resto da sociedade, desconstruir todo o discurso falso
montado pelo agronegócio de que este seria o único modelo possível para
produzir alimentos. O modelo deles é este com veneno, com transgênicos, com
sementes estéreis, com alto consumo de alimentos industrializados e com grande
impacto sobre o meio ambiente, ao contrário do que tentam nos fazer engolir.
Aqui (na Cúpula dos Povos) estamos trazendo outra mensagem: o modelo de
produção da agroecologia – que defendemos – não pode conviver com esse modelo
insustentável (do agronegócio), que contribui mais e mais para destruir a
biodiversidade – patrimônio da humanidade.
E você, Beth? Como avalia esta Cúpula?
Beth - Além do que disse a Vanessa,
acrescento que para mim a Cúpula dos Povos foi um grande espaço de convergência
dos movimentos sociais, não só do Brasil, mas da América Latina e de outras
partes do mundo. E foi muito importante para dar visibilidade para o movimento
feminista. Achei importante demais estes dias em que a gente ficou convivendo
aqui com os diversos movimentos. Eu acho que crescemos com isso, aprendendo a
incorporar a pauta dos outros nas nossas lutas também. Eu acho que as
manifestações foram maravilhosas. Todos os dias a gente via passeatas nas ruas,
muita mobilização e ação direta. Acho que isso fez muito bem, não só para os
movimentos, como também para a sociedade em geral – para as pessoas verem que
nem tudo que está sendo feito em relação ao meio ambiente é igual. Existem
diferenças, ideias diferentes, e o importante é a gente estar aqui colocando
isso: existe algo diferente do que se discute na conferência oficial da ONU.
* originalmente publicado no site da Fase
Fonte: Ascom/Fase
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