* Anelise Rizzolo
Em 2016, celebramos uma década de
aprovação da lei 11.346/2006, a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e
Nutricional (Losan), que visa à garantia do direito humano à alimentação
adequada e saudável para todos os cidadãos e cidadãs brasileiras. De lá para
cá, diferentes cenários configuraram o seu contorno social, com avanços e
desafios que buscam qualificar e dar significado às políticas públicas
relacionadas a esses temas.
O Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (SISAN), integrado por órgãos e entidades da União,
estados, Distrito Federal e dos municípios, além de instituições de direito
privado, se organiza dialogando com atores sociais e instâncias políticas em
diferentes dimensões da estrutura alimentar. Envolvendo, desde a origem,
produção e abastecimento, passando pelos processos de trabalho relacionados à
distribuição, comercialização e acesso até chegar no consumo e disponibilidade
nutricional, por meio de formas de processamento, manipulação e preparação da
comida.
Esta complexa cadeia percorre inúmeras
tensões na sua configuração. No atual contexto global, a comida é identificada
como mercadoria e os conflitos de interesses passam a ser um aspecto-chave para
compreender as dificuldades encontradas para constituir e avançar na
alimentação adequada e saudável como um direito humano e social.
Em relação ao conflito de interesse, de
acordo com o manifesto de criação da Frente pela Regulação da Relação
Público-Privado (disponível em http://
regulacaopublicoprivado.blogspot.com.br/p/manifesto.html), “o setor privado vem
atuando de várias formas no sistema alimentar brasileiro: na produção e
comercialização de sementes, produtos transgênicos, insumos agrícolas,
pesticidas, equipamentos produtivos, indústria farmacêutica (medicamentos para
animais e humanos – dentre outros); na utilização do solo para diferentes fins
(produção, coleta de água subterrânea); na adição de nutrientes a alimentos
(farinhas adicionadas de minerais, sal iodado); na comercialização de refeições
(inclusive para o setor público, como no caso da alimentação escolar
terceirizada); na produção de fórmulas industriais para pacientes
hospitalizados; e na produção, comercialização e estímulo ao consumo de
alimentos ultraprocessados. Da forma como vêm sendo predominantemente
conduzidas, essas ações comprometem a segurança alimentar e nutricional da
população e a soberania alimentar do país, conformando um sistema alimentar
pautado em um modelo concentrador de poder e altamente dependente de
corporações multi e transnacionais”.
As oito diretrizes da Política e Plano
Nacional sinalizam as prioridades e desafios do cenário político da Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN) e delimitam as fronteiras dos conflitos de
interesse envolvidos neste tema, tanto do ponto de vista ético quanto político.
Os debates sobre alimentação adequada e saudável, abastecimento, agroecologia,
agrotóxicos, meio ambiente, saúde coletiva, educação alimentar e nutricional,
acesso à água, biodiversidade, transgênicos, biofortificação de alimentos,
acesso à terra e populações vulnerabilizadas socialmente, entre outros, são
expressões das contradições da construção do SISAN no Brasil.
Apesar da existência de uma Política
Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, a fragilização do marco legal
para regulação, controle e redução de agrotóxicos no Brasil se intensifica. E,
no modelo agrícola vigente, o agronegócio continua recebendo a maior parte do
subsídios públicos destinados à agricultura. Mesmo com a publicação do Guia
Alimentar para a População Brasileira, feita pelo Ministério da Saúde em 2014,
com recomendações importantes acerca da segurança e soberania alimentar e
nutricional, as práticas de publicidade e marketing avançam ardilosamente na
promoção de modos de viver não saudáveis.
Reconhecidamente, a compreensão e
inserção política da Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional vêm se
ampliando e sensibilizando novos atores. Porém, por tratar-se de um conceito
polissêmico, apresenta uma margem de confusão que pode gerar importantes
contradições. O interesse de participação da indústria de alimentos na
organização de eventos científicos e acadêmicos é um exemplo da ambivalência e
risco de conflito de interesse existentes.
A implantação do Sisan precisa se dar
de forma articulada ao contexto histórico-político de construção da SAN no
país. Não se pode esquecer que o enfrentamento às ameaças políticas para a
produção, abastecimento, comercialização e acesso à alimentos saudáveis,
sustentáveis, culturalmente referenciados, adequados à saúde e socialmente
justos precisa se expressar no contexto das relações políticas e sociais.
Os aspectos preconizados na agenda
política da Rede de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN)
precisam encontrar correspondência nas práticas de escolha, seleção e preparo
de alimentos; precisam dialogar com os valores envolvidos na identidade da comida
como um patrimônio social e político; precisam criar mecanismos que
possibilitem o exercício da soberania alimentar em suas diferentes dimensões:
desde a seleção da semente, passando pela oferta e garantindo escolhas que
dialoguem com a cultura alimentar dos diferentes grupos étnicos e sociais no
Brasil.
As desigualdades inerentes ao sistema
econômico e ao processo produtivo, inclusive de alimentos, são fatores
determinantes da má alimentação e das desigualdades sociais. Portanto, para que
as medidas neste campo possam ser resolutivas, e deixem de ser apenas
compensatórias de um problema gerado por um modelo de desenvolvimento
excludente, é preciso ter coragem de enfrentar essa questão. O atual momento
político é preocupante, pois as estratégias hegemônicas têm se aproximado de
modelos neoliberais.
O enfrentamento das desigualdades que
demarcam o processo de Insegurança Alimentar e Nutricional impõe mudanças
radicais. A potencialidade das proposições da rede de políticas em SAN:
Losan/PNSAN/Sisan/Plansan incitam alterações profundas na estrutura política e
econômica brasileira. Esse desafio se configura de imensa importância – seja
por seu caráter universalista, seja porque pressupõe o alcance de bens
públicos, como a sustentabilidade social, econômica e ambiental, o direito
humano, os direitos de cidadania, à alimentação adequada e à cultura.
Os princípios da Lei Orgânica da
Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) expressam a preocupação da
universalidade tanto no respeito à diversidade quanto na busca de formas de
participação com equidade para os diferentes grupos sociais. E, neste sentido,
há muito a celebrar. A agenda afirmativa de direitos sociais garantiu inserção
da SAN no campo das políticas públicas brasileiras.
Contudo, a SAN não pode se resumir a um
conjunto de políticas setoriais, pois é um eixo orientador de políticas que
deve contribuir para que seus objetivos se incorporem no conjunto de políticas
públicas nacionais que visem ao desenvolvimento social. Deve se configurar no
eixo orientador de um modelo de desenvolvimento social e econômico que busca
garantir o bem-estar social acima dos interesses de acumulação de
capital.
Urge que a sociedade se
aproprie do tema e de seu significado, à luz do conjunto
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