Artigo de Wanessa Marinho*
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o mundo estava vivendo uma pandemia causada pelo novo coronavírus. Na prática, isso significava que o vírus já estava espalhado por diversos continentes e com transmissão contínua entre as pessoas. Um ano depois, não temos nada para celebrar. Vivemos no nosso país a pior fase epidemiológica, atingindo a marca de mais de 2 mil mortes em 24h; não temos uma liderança no governo para guiar a população; a vacinação avança a passos muito lentos, principalmente se comparada com as medidas adotadas por outros países; enquanto aumentam em grande velocidade o desemprego, a pobreza e a fome.
Nos últimos 12 meses, mais de 270 mil pessoas morreram de Covid-19 no Brasil. Nos últimos dias, cerca de 25% das cidades mineiras (mais de 200 municípios) entraram na "onda roxa" do plano Minas Consciente e estamos longe de reverter a nossa situação. A verdade é que a pandemia do novo coronavírus chegou no nosso país em um contexto já bastante delicado: desmonte de políticas públicas, sucateamento do sistema de saúde, retirada de recursos da ciência, estagnação econômica, aumento da população em situação de rua, ataques aos direitos territoriais de assentados da reforma agrária, povos indígenas e comunidades tradicionais e retorno ao Mapa da Fome da ONU.
E o que a Covid-19 fez, além de infectar mais de 11 milhões de pessoas no Brasil, foi explicitar as nossas desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero. Nesse sentido, dados recentes do IBGE mostram que existe um grande abismo entre as pessoas que são atingidas pela doença. Ou seja, a população negra, mulheres, idosos, povos indígenas e comunidades tradicionais, além das trabalhadoras e trabalhadores informais são os mais afetados pela pandemia, que tem as suas consequências potencializadas nesses grupos.
Há pesquisadores que apontam para a ocorrência de uma “sindemia” ao invés de pandemia já que, conforme exposto, no atual contexto a ação do vírus se associa às desigualdades econômicas e sociais que vivenciamos. “A perspectiva sindêmica nos alerta para uma visão mais ampla, interligando os aspectos macros e micros na relação entre o homem, a sociedade e o meio ambiente como uma só rede, afinal, a intencionalidade por uma solução puramente biomédica não será minimamente eficaz em meio as consequências desastrosas da COVID-19 para os cidadãos mais vulnerabilizados.” - é o que destaca o texto do artigo “Fome em tempos de pandemia de COVID-19: uma análise crítica aos sentidos (re)produzidos pela mídia” no dossiê publicado este mês pela revista Segurança Alimentar e Nutricional, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp. Os pesquisadores deste artigo destacam ainda que o relatório da ONU aponta que a crise que estamos enfrentando pode acarretar em “um retrocesso histórico de 15 anos na luta contra a fome, dando início a uma verdadeira pandemia da fome”.
É importante destacar que o problema da fome não tem início com o novo coronavírus. O alerta do retorno do Brasil ao Mapa da Fome da ONU já indicava as consequências de todos os retrocessos que a população brasileira tem sido vítima nos últimos anos. Antes da chegada do vírus, mais de 10 milhões de brasileiros já viviam em situação de insegurança alimentar grave, sem acesso suficiente a alimentos e até passando fome. Fato que é ainda mais preocupante quando lembramos
que o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) foi extinto no início do mandato do atual governo federal, e o quanto as políticas de SAN e o diálogo
entre o governo e sociedade civil são fundamentais para promover e defender a
soberania e a segurança alimentar e nutricional, principalmente da população em
situação de vulnerabilidade social. Contudo, o acesso à alimentação não é uma prioridade para o governo.
Dados da pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes (realizada pelo Ibope para o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF) revelam que um em cada cinco brasileiros, em algum momento, viveu a situação dos alimentos acabarem nos seus lares e de não ter dinheiro para comprar mais comida. Além disso, quase metade da população (49%) relatou mudanças nos hábitos alimentares. Entre as famílias com crianças e adolescentes os números são ainda maiores, 58%. A pesquisa ainda revelou que, no contexto da pandemia, 31% destas famílias passaram a consumir ainda mais alimentos industrializados. A Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 (ou seja, antes do início da pandemia) já havia revelado que famílias em situação de vulnerabilidade social enfrentam dificuldade para consumir alimentos de qualidade e na quantidade certa. Segundo os dados, essa dificuldade tem sido enfrentada tanto nas áreas urbanas (23,3%) quanto nas áreas rurais (40,1%).
A agricultura familiar brasileira, reconhecida como responsável por 70% da alimentação no país, vive nas áreas rurais e tem enfrentando um grande problema de escoamento da sua produção nesse contexto da pandemia. Com o fechamento da maioria das feiras, devido à necessidade do distanciamento social, com o desmonte de políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a dificuldade de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), os relatos das famílias agricultoras são de perda de 30 a 50% da renda.
Nós não estamos apenas retornando ao Mapa da Fome, estamos entrando em uma situação que pode ser muito mais grave, a Pandemia da Fome. Não saber o que irá comer na próxima refeição ou não ter dinheiro para comprar a quantidade suficiente de alimentos já é uma realidade na vida de milhões de brasileiros e não existe uma perspectiva desses números diminuírem. O Consea foi extinto no âmbito federal, mas em alguns estados do país continua ativo, defendendo a política de segurança alimentar e exercendo o seu dever de controle social, monitoramento e acompanhamento das ações nos municípios e da situação da população. Nesse grave momento de crise econômica, política e sanitária, em que completamos um ano de pandemia do coronavírus no mundo, o Consea MG reforça o seu compromisso de seguir lutando pela continuidade e fortalecimento de políticas públicas fundamentais para a população, como o PAA e o PNAE, pela valorização da agricultura familiar e agroecologia, pela comida de verdade no campo e na cidade e, principalmente, pelo direito humano a uma alimentação digna e adequada.
*Este texto é uma iniciativa da Comissão Permanente de Sustentabilidade do Consea-MG e foi escrito por Wanessa Marinho (conselheira do Consea, representando a Articulação Mineira de Agroecologia - AMA).
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