Segunda, 19 de novembro de
2012
Semiárido:
contradições e alternativas. Entrevista especial com Valquíria Smith
“Boa
parte da agricultura familiar e camponesa do Brasil vive na região do
semiárido, por isso precisamos pensar políticas públicas adequadas de desenvolvimento
dessas famílias”, diz a coordenadora executiva da ASA, em Minas Gerais.
Há 12 ou 15 anos, o olhar
que a sociedade brasileira tinha sobre o semiárido era o de um lugar de terra
rachada, de seca, de pessoas morrendo e migrando para outros locais”, diz
Valquíria Smith à IHU On-Line. Apesar de a região continuar marcada por
“contradições”, foi possível reafirmar “um olhar de que o semiárido não é isso.
O semiárido é uma região de inúmeras potencialidades, que tem uma agricultura
familiar e camponesa forte, viva, que resiste e que aprende a conviver com a
seca, que é um fenômeno da natureza”, assinala.
Na entrevista a seguir,
concedida por telefone, Valquíria reconhece que a convivência dos sertanejos
com o semiárido está melhor, mas enfatiza que o acesso à água continua sendo um
desafio. “Hoje, a política de acesso à água para as famílias do semiárido é
pensada através de grandes projetos e transposições de água, mas pensamos que é
necessário investir em tecnologias que possam ser difusas, simples e baratas,
como as cisternas de captação de água da chuva”. E acrescenta: “Essa mudança
pode parecer muito simples para quem não conhece a realidade do semiárido, mas
é uma mudança vital e significativa na vida dessas pessoas que andavam em média
quatro ou cinco quilômetros por dia para conseguirem água para beber”.
A seca atual, considerada a
mais intensa dos últimos 30 anos, “mostra que muitas famílias estão passando
diversas dificuldades não só por falta de água para o consumo humano, mas falta
de água para a produção de alimentos”, informa. Para propor alternativas e
garantir a convivência dos sertanejos com o semiárido, a ASA promove o VIII
Encontro Nacional da Articulação no Semiárido – EnconASA, em Januária, a 169
quilômetros de Montes Claros, região norte Minas Gerais. Entre os dias 19 e 23,
cerca de 600 pessoas, vindas de várias partes do Sertão e Agreste nordestino,
discutirão alternativas para garantir a convivência no semiárido. Segundo
Valquíria, o evento pretende “mais uma vez colocar em pauta esse debate e
discutir políticas públicas adequadas para a região”.
IHU
On-Line – Em que contexto histórico surgiu a Articulação no
Semiárido Brasileiro – ASA e qual sua proposta para o semiárido?
Valquíria
Smith – A ASA surgiu em 1999, quando aconteceu uma conferência das Nações
Unidas, que discutiu o combate da desertificação, pensando o semiárido
brasileiro. Neste encontro estavam reunidos chefes de Estados, que pensaram
políticas públicas para essa região. À época, a ASA organizou um encontro
paralelo, com organizações da sociedade civil que já atuavam no semiárido, para
propor ações de convivência com o semiárido. Lançamos, na ocasião, a declaração
do semiárido, com as bases para debater a convivência com a região. Ali nasceu
a proposta do programa Um Milhão de Cisternas, que pretendia acolher um milhão
de famílias do semiárido brasileiro com cisternas de captação de água de chuva
para o consumo humano. Entendíamos que qualquer ação para pensar um projeto de
desenvolvimento para o semiárido brasileiro passava pelo acesso à água.
IHU
On-Line – Qual a proposta do VIII EnconASA no que se refere à
discussão acerca da convivência com o semiárido?
Valquíria
Smith – Depois de doze anos de existência da ASA, que une
atualmente mais de três mil organizações da sociedade civil, sindicatos,
igrejas, ONGs, pretendemos retomar as discussões sobre a convivência com o
semiárido brasileiro, as trajetórias de lutas e resistência para a superação da
pobreza e a construção da cidadania. Nós queremos mais uma vez colocar em pauta
esse debate e discutir políticas públicas adequadas para a região, tal como o
debate da água, da terra, das sementes, da soberania e segurança alimentar, de
uma assistência técnica adequada para a região, de acesso ao mercado, de
economia solidária, financiamento, crédito, fundo solidário, direito das
mulheres, educação, comunicação popular.
IHU
On-Line – Qual a atual situação do semiárido brasileiro? Dizem que
essa é a maior seca dos últimos 30 anos.
Valquíria
Smith – Boa parte da agricultura familiar e camponesa do Brasil
vive na região do semiárido, por isso precisamos pensar políticas públicas
adequadas de desenvolvimento dessas famílias. Entretanto, hoje nos deparamos
com uma série de contradições, especialmente no campo. Ao mesmo tempo em que a
ASA defende propostas de desenvolvimento sustentável, solidário, onde a água e
a terra possam ser democratizadas, para que as famílias possam ter uma
agricultura familiar diversificada, com bases na agroecologia, ainda nos
deparamos com um modelo de desenvolvimento que se contrapõe a tudo isso. O
agronegócio, o hidronegócio, a monocultura do eucalipto, a mineração, os
grandes projetos de transposição das águas são contradições do semiárido que
geram exclusão, concentração de água, de terras. O encontro da ASA irá abordar
essas questões.
IHU
On-Line – Como as populações do semiárido brasileiro convivem com
a seca e com as demais características do semiárido? O que mudou ao longo
desses 12 anos?
Valquíria
Smith – Sem sombra de dúvidas, a ASA contribuiu para o debate
sobre o acesso à água, inclusive para que a distribuição se tornasse uma
política pública apoiada pelo governo federal, pelos governos estaduais e
municipais. Isso foi significativamente importante para a mudança da qualidade
de vida dessas famílias.
Hoje, a política de acesso à
água para as famílias do semiárido é pensada através de grandes projetos e
transposições de água, mas pensamos que é necessário investir em tecnologias
que possam ser difusas, simples e baratas, como as cisternas de captação de
água da chuva. A construção de novas cisternas têm democratizado
significativamente o acesso à água das famílias do semiárido brasileiro. Essa
mudança pode parecer muito simples para quem não conhece a realidade do
semiárido, mas é uma mudança vital e significativa na vida dessas pessoas que
andavam em média quatro ou cinco quilômetros por dia para conseguirem água. No
momento em que uma família tem água para o consumo humano e para produzir seus
alimentos, reafirmamos que o semiárido é uma região com várias potencialidades
e possíveis políticas públicas adotadas.
A ASA também contribuiu no
sentido de fazer com que a sociedade brasileira olhasse para o semiárido. Há 12
ou 15 anos, o olhar que a sociedade brasileira tinha sobre o semiárido era o de
um lugar de terra rachada, de seca, de pessoas morrendo e migrando para outros
locais. Reafirmamos um olhar de que o semiárido não é isso. O semiárido é uma
região de inúmeras potencialidades, que tem uma agricultura familiar e
camponesa forte, viva, que resiste e que aprende a conviver com a seca, que é
um fenômeno da natureza.
IHU
On-Line – Como está o projeto Um milhão de cisternas? A má
distribuição de água ainda é um agravante que atinge o semiárido?
Valquíria
Smith – Com certeza. Essa seca mostra que muitas famílias estão passando
diversas dificuldades não só por falta de água para o consumo humano, mas falta
de água para a produção de alimentos. O programa Um Milhão de Cisternas se
tornou uma política pública do governo federal, que reconhece existir uma
demanda de construção de 1,2 milhões de cisternas de captação de água de chuva.
Hoje, mais ou menos 700 famílias ainda precisam ser atendidas no semiárido
brasileiro. Os projetos de acesso à água precisam continuar sendo uma
prioridade da política pública brasileira. É preciso orçamento, previsão
orçamentária para fortalecer todos os debates de acesso à água para as famílias
do semiárido brasileiro.
IHU
On-Line – A partir da universalização das cisternas de 16 mil
litros de água para consumo humano, qual é o novo desafio da ASA e do governo
brasileiro em relação ao semiárido?
Valquíria
Smith – O acesso à água ainda tem desafios. Ao mesmo tempo em
que o governo investe em políticas públicas de apoio a cisternas de captação de
água da chuva, e tecnologias de armazenamento de água de chuva para a produção
de alimentos, ainda nos deparamos com grandes barragens, com grandes obras, com
tecnologias que não são adequadas para resolver o problema de acesso à água no
semiárido brasileiro.
Também existe um grande
desafio no que se refere ao acesso à terra. O semiárido brasileiro não é só uma
região que concentra água, mas também uma região que concentra terra. O acesso
à terra, seja via reforma agrária, seja pelo reconhecimento das comunidades
tradicionais, quilombolas e indígenas, ainda não foi resolvido, e ele é
fundamental para melhorar a qualidade de vida e fortalecer a agricultura
familiar e camponesa. Também são fundamentais políticas de soberania, de
segurança alimentar, de distribuição de sementes.
IHU
On-Line – Qual é a proposta da ASA para garantir a convivência com
o semiárido a partir do uso de sementes crioulas? Essa proposta pretende
diminuir o uso de agrotóxicos? Já tem algum projeto em andamento?
Valquíria
Smith – O uso de agrotóxicos no semiárido, assim como em outras
regiões do Brasil, existe. Por isso alertamos as famílias que têm trabalhado
com a ASA sobre a importância do desenvolvimento de um novo modelo baseado na
agroecologia. Algumas famílias já adotaram o modelo de produção agroecológico,
mas outras estão em transição, e muitas famílias precisam de formação para
repensar o modelo de produção.
Ao longo desses 12 anos, a
ASA tem incentivado o uso de sementes crioulas e há experiências positivas na
Paraíba, Alagoas, no Ceará. O uso de sementes crioulas favoreceu o intercâmbio
e trocas entre as famílias.
IHU
On-Line – Quais os limites das políticas de superação da pobreza e
miséria no Brasil? Como vê os programas de distribuição de renda como o Bolsa
Família?
Valquíria
Smith – Esse é um tema que podemos discutir com o governo.
Entendemos que esses programas também são uma forma de distribuir renda no
Brasil. Não podemos negar isso. Esses programas causaram um impacto positivo
nas famílias do semiárido. Obviamente, podemos criticá-los por não serem a
melhor forma de distribuição de renda, mas não podemos parar por aí. Tais
programas não irão por si resolver os problemas estruturais que essas famílias
enfrentam. Por isso discutimos ações estruturantes de mudança de qualidade de
vida, que perpassam pelo debate sobre a terra, a água, a educação, a
alimentação, a soberania de segurança alimentar, o acesso a mercados,
financiamentos, créditos, diversos conjuntos de ações que de fato possam
melhorar a qualidade de vida dessas famílias e fazer com que se supere a
pobreza e se construa a cidadania.
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